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A prata e o ouro

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É uma viagem no tempo por algumas das peças mais emblemáticas da ourivesaria portuguesa de finais do século XII até o princípio do XIX, no Museu de Arte Sacra, do Funchal, através do profundo conhecimento do Francisco Clode, director regional de serviços de Museus e Património da direcção regional da cultura, naquela que foi a última palestra cultural do projecto “Dar a ver”.

A colecção de ourivesária do Museu de Arte Sacra é de elevada importância não só pela sua qualidade e diversidade e pelo seu legado histórico, como pelo desvendar da história da ourivesária portuguesa. Há um conjunto de obras de arte de absoluta excepção, são quatro peças oferta directa da corte do rei D.Manuel I, cuja obra mais emblemática tem circulado pelo mundo por inúmeras exposições, desde o século XIX, pela sua representividade da ourivesaria manuelina, porquê é que esta cruz, a peça central de doação do rei, que morre em 1521, mas deixa por vontade expressa numa carta régia que esta obra de ourivesária litúrgica e as restantes ficariam para a capela-mor na Sé do Funcha, é tão importante? Esta cruz procissional, como a palavra indica, que dizer que é levada na procissão, é única, porque as restantes obras similares e documentadas que se conhecem desapareceram, a dos Jerónimos é um desses exemplos e a outra cruz procissional que se aproxima é muito mais tardia e esta hoje no Museu Alberto Sampaio, em Guimarães.

A peça é constituida pelos elementos típicos das cruzes procissionais, um delas é um nó e ela ser como em muitos casos da ourivesaria manuelina é uma mistura de feitos, isto é, ela tanto representa um gótico final em progressivo desaparecimento, mas é em si a expansão portuguesa e da abertura ao mundo, é uma abertura renascentista à Europa. É importante observar já na época que se fazia a alusão da arquitectura ao romano, que é o nova arte emergente, o renascimento que vem misturar-se ao gótico. A arte manuelina é esse cadinho entre união dessa tradição sacro-mediaval que se encontra com a arte do renascimento. O aparato constitui sempre as obras ligadas as encomendas régias, para já, a presença constante dos símbolos do rei, a esfera amilar, os ajustamentos, a coroa real portuguesa, estão representadas quer nos portais da arquitectura civil, quer no religioso, no coroamento das abóbodas e é muito interessante que na ourivesária manuelina aparecem novamente esses elementos.

Há também outro dado, muitas vezes na ourivesária portuguesa, muita dela era feita na rua dos ourives em Lisboa, onde havia mestres dedicados apenas ao ouro e outros a prata, na cidade pombalina aparece a rua do ouro e da prata, e portanto, é no círculo da corte, entre os ourives mais próximos do rei que se executa esta cruz. Quero chamar à atenção também para o facto que estas cruzes muitas vezes serem maquetes para a arquitectura, se reparámos o nó da cruz, tem os seus contra-fortes, butaréus e pináculos, todos esses elementos verticais que dão o efeito de uma construção que se aproxima à Igreja dos Jerónimos, com a sua arquitectura manuelina.

Depois há outro elemento interessante, para além dos pormenores de raíz gótica, tem também vazados nestes portais que se vão desenvolvendo no hexágono da base, são elementos abertos, que se identificam com o Diogo de Castilho, o autor do claustro do mosteiro dos Jerónimos, portanto, isso são elementos renascentes que tem a ver com essa nova gramática decorativa, através da gravura flamenga e italiana que começou a chegar a Portugal, muitas vezes através de modelos espanhóis, ou mesmo pela presença de ourives estrangeiros que vieram trabalhar para a corte de Lisboa.
Outro aspecto de referir, a enorme delicadeza e de apuro tecnológico e é assim que se deve dizer, a peça em prata é muito avançada para o seu tempo, tal é a qualidade de toda a sua gramática simbólica e temática exposta, como também pelo apuro do desenho e do trabalho da prata. A representação da flagelação de Cristo, a traição de judas, há uma história principal e a narrativa que se desenvolve, de um lado temos o Cristo crucificado, do outro o Cristo redentor e salvador.

A segunda oferta do rei, esta incluída, nas 21 peças que foram colocadas numa caixa em Lisboa, das quais apenas estas quatro sobreviveram até os dias de hoje, o porta-paz, é também em si uma obra raríssima da ourivesária portuguesa, mais do que a cruz processional, esta peça se afasta ainda mais de uma linguagem gótica final e assume um gosto moderno. Tem entabulamentos, tem capitéis coríntios, pela aplicação de pedras preciosas na ourivesária chega-se a conclusão que estes jazigos de São Tiago de Compostela, tem a ver com esta ideia simbólica de oferta da paz, uma peça que se move, que representa a epifania.
Depois há um duplo sentido, os peregrinos foram aqueles que se movimentam para os locais de maior peregrinação, que é o sentido da presença do jazigo da pedra que ladeia a cena principal, mas tem também possui alguns símbolos régios, os trintões, umas figuras míticas meias-humanas, meias-peixes que estão a segurar a coroa, não sabemos se a figura superior seria um anjo-tenente, ou o Deus Pai, porque esta partida. Contudo, existe algo que sabemos é que a cena dos reis magos que tem duas representações, uma no retábulo de São Bento, de Gergório Lopes, e outra do retábulo de Sétubal de Jorge Afonso, muito provavelmente os ourives da prata tinham por modelo gravuras flamengas e italianas, mas foram influenciados pelos pintores primitivos portugueses, ambos os nomes citados foram artistas da corte e muito próximos desta inovação que as presentações renascentistas tem na ourivesária portuguesa.

O cálice de ouro, do final do século XVI, não conta já com a presença de campainhas, porque quando se elevava o cálice elas redobrabam a atenção do gesto, mas em seu lugar possui pingentes no cristal de rocha, que é considerada uma pedra preciosa e é muito interessante perceber que isto resulta da expansão marítima de Portugal no Oriente. Estes materiais provém dessas zonas do globo que permitem a sua adaptação e aplicação nestas peças de ourivesária. O cálice é proveniente da Sé do Funchal, mas a sua origem é de uma capela arruínada, que é de São João Latrão, já perto do Aeroporto internacional da Madeira.

A nossa senhora do Rosário, é outra das obras do espólio, o rosário julga-se que é de coral, é uma peça que pode ser datada entre os 25 a 35 anos do século XVI, contrariamente ao que se pensou, também é única no contexto nacional, na sua base apresenta um dos símbolos de ser nossa senhora da brota, que é um flor e ela abre-se, é a ideia de ser mãe não só de Deus, mas de todos nós, porque trouxe-nos a descendência divina. Abordo esta obra de escultura porque faz um enquadramento da época e como as outras artes reagem perante da ourivesária.

As últimas peças são de Antuérpia, é o cálice da matriz de Machico e a celébre bandeja dita do Figueira, ninguém sabe quem é este homem, desde essa altura é apelidada como a bacia do Figueira, é uma obra flamenga do terceiro quartel do século XVI e tem a representação do deus Janus, que é o deus do dois mundo, das duas faces, da porta para o caminho do céu, ou do pecado. É muito interessante ver como a mitologia clássica e toda essa gramática simbólica do renascimento se introduz também nas peças do cristianismo. Não esqueçámos que a Antuérpia era até 1587 um dos mais importantes centros do comércio na Europa e porquê esta data? Porque o império espanhol toma conta da cidade, a arrasa nesse ano e deixa de ser o centro da ourivesária europeia.

A caldeirinha é também um encontro de dois mundos, o quase desaparecimento do gótico final e essas ideias classicistas do renascimento e aqui temos a importância dos símbolos régios, uma das maiores esferas amilares do contexto português, a esfera mundi, símbolo do rei português que se tinha em tanta consideração que se auto-intulava esperança do mundo e era presentado como redentor. É muito interessante ver que a esfera cobre todo o fundo da peça.

O outro conjunto de peças que representa a riqueza extraordinária e a diversidade tipológica do museu, no último quartel do século XVI e boa parte do XVII, todas elas, ou a grande maioria representam a riqueza das oficinas de ourives e os revelam que os mestres da prata ao trabalhar para as confrarias religiosas demonstram uma grande vitalidade deste negócio em Portugal.
A maior parte dos ourives na Madeira aproximam-se do maneirismo nacional e muitas vezes se traduzem numa linguagem despojada sem grande teor de aparato, mas tem uma delicadeza formal e um trabalho de gravura que é muito característico da ourivesária da época. A salva com pé, foi executada por alguém que viu o trabalho dos flamengos e estabeleceu isso na bandeja do Figueira, havia uma capacidade de observar a ourivesária de outros lados e depois traduzi-la ao gosto nacional e regional. Outro elemento que aproxima esta peça à arquitectura é que a arte portuguesa possui uma ideia de simplicidade, de desornamentação, de rigor formal, que é raro no contexto europeu, mas que é interessante no contexto ibérico e sobretudo no nacional. Não podemos esquecer que em 1580 perdemos a independência, que só recuperámos em 1640 e portanto vai assistir-se em Portugal, o que se designa de arquitectura chã, que é despojada, cria uma ideia de grande simplicidade formal e decorativa e que depois tem esse efeito funcionalista.

A naveta, que servia para transporte do incenso, há uma grande presença da ourivesária do século XVII e XVIII, mas estão integradas outros elementos artísticos e que ajudam a perceber o contexto decorativo, neste caso, é a ideia do barroco. Nesta época temos o enchimento dessa arte chã por elementos barrocos. A palavra barroco parece que é de origem portuguesa, segundo alguns países europues surge na forma como portugueses chamavam umas pedras deformadas da Arábia, as barrocas, pérolas que não eram perfeitas, mas também no Alentejo existem umas pedras nas planícies chamadas de barrocais, no fundo o que esta na base deste movimento é uma dispersão visual.
Quando olhámos para as peças que estavam marcadas pela contenção visual no espaço com a sua sobrieridade decorativa, o barroco traz o espectáculo do triunfo de uma igreja que se quer renovada, depois do cisma da Europa e do concílio de Trento que vai trazer uma nova expressão e propaganda da fé. Esta linguagem visual esta ligada a uma apropriação do espaço, há uma espécie de gesto largo, não equilibrado e que começa a desenvolver-se em todas as obras de arte até a arquitectura e a ourivesária.
A grande sede da arte barroca é Roma e é de Itália que vem os modelos que ser expandem em Portugal e que vamos traduzir à nossa maneira. A peça é de extraordinária cinzelado, é uma das obras da corte barroca, de 1747, anterior ao terramoto de Lisboa, há uma atenção formal ilusória, mas que depois é revolucionada por estes aconcheados e labéus e trazem espaço dentro do próprio objecto.
A Madeira possui a maior coleção de navetas ao nível nacional, a peça em causa é uma espécie de representação do barroco, a definição da nau desapareceu quase completamente, descolou da obra e é uma revolução formal da apropriação do espaço, um caos organizado, o desaparecimento da forma base e da criação de uma autoridade formal que é bem idetificativa da arte barroca portuguesa. Destaco ainda, uma série de sacras, que valem pelo seu sentido arquitectónico, pela ilusão óptica, mas no fundo eram uma cábula, para que os padres não se enganassem estava escrito exactamente o que se tinha de dizer, a repetição de momentos da missa.

A custódia de ouro de um ourives francês que vivia em Lisboa, Paul Malle, esta datada de 1799, é o primeiro exemplo de ourivesária neo-clássica em Portugal, para além disso, temos alguns elementos do neo-classicismo que vai marcar o século XVIII e uma parte do XIX. Chamo à atenção para a delicadeza do trabalho de gravação de ouro, dos recortes das pinturas do clássico.

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