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O historiador do conflito

Escrito por 

António José Telo é professor catedrático na academia militar, tendo sido também docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa até 1999. É autor de mais de 20 livros e 200 artigos sobre história, defesa e relações Internacionais, publicados em 6 países. O historiador esteve presente no ciclo de conferências ínsula, sob a temática “A guerra e a grande mudança na realidade portuguesa continental e insular”.

O presidente Wilson redigiu um documento onde em 14 pontos explicava o que poderia trazer paz ao mundo, num deles é explanado a
necessidade de haver uma balança comercial ao nível europeu e global. Isso de facto com o passar dos anos concretizou-se, mas hoje em dia os novos governos que estão a surgir são precisamente contra essas medidas, qual é a sua posição?
António José Melo: Repare na altura o comércio era verticalizado, deixe-me traduzir isto em termos mais simples, significava que cada império tinha comércio livre, como era o caso do britânico, do francês , etc, mas havia uma forte pauta de um para o outro. Não era livre, estas zonas de comércio eram áreas de mercado assegurados para os grandes poderes europeus, eles eram a regra e todos eram protegidos por uma pauta alfandegária forte, nomeadamente Portugal, o que permitiu o desenvolvimento da sua indústria. O que o presidente dos EUA parece dizer é que a solução é acabar com essas barreiras para o livre comércio, o que significa que as mercadorias podem entrar sem pagar taxas e durante 100 anos o ocidente pautou-se por isso, e foi inclusivé pensado que liberdade comercial é o mesmo que liberdade política, não é. São aspectos totalmente diferentes, então o que aconteceu? Nas últimas décadas, 20, 30 e 40 anos houve um processo de desindustrialização maciça, quer dos EUA, quer sobretudo da Europa, hoje temos menos de um terço do que tínhamos há 30 anos e é um processo que é sentido profundamente sob a forma de segurar o emprego, existe um desemprego amplo, as áreas mais afectadas são as da Europa do Sul e a Alemanha até tem beneficiado com isso, com condições de concorrência que os outros países não possuem e este processo esta a ser contestado, como é que pode haver uma liberdade de comércio com concorrência desleal? Quando na Europa temos salários que são 100 e as indústrias europeias deslocam-se para países com ordenados de 10 e os seus produtos são vendidos com barreiras mínimas, ou seja, estámos a sofrer uma concorrência desleal, porque o nível de vida europeu é diferente dos outros continentes e os produtos vindos do exterior acabam por arrassar a nossa indústria. E isto começa a ser contestado em termos da sua lógica, porque uma política central, em termos da União Europeia e cada vez esta a ser mais contestada, porquê? Porque se torna difícil manter o emprego na Europa.

Mas, isso também acontece nos EUA e um dos estandartes do Donald Trump é precisamente devolver emprego à classe média americana que também se foi empobrecendo quando as suas empresas também começaram a fechar e agora tem vindo a afirmar que vai taxar os produtos vindos da China.
AJM: Isto é um lógica que veio da I guerra mundial, ou seja, os EUA levaram essa bandeira de instituir esse princípio da nova ordem internacional da liberdade de comércio e hoje em dia, são os americanos a dizer, alto, temos que parar porque de facto é concorrência desleal conosco, portanto, temos de reinstaurar regras alfandegárias em relação sobretudo as empresas que vão para o exterior produzir os seus produtos e que depois são vendidos em território nacional. E isso também acontece na Europa, há políticas centrais europeias que estão erradas, mas isto não põe em causa a liberdade de circulação de mercadorias dentro do espaço europeu.

Mas, são precisamente esses argumentos que os partidos de extrema-direito usam e que estão a ganhar peso nas sociedades dos seus países.
AJM: Acontece uma coisa que é normal é que todos os sistemas estão datados, não existem para sempre e há duas hipóteses, ou o sistema tem capacidade de se adaptar aos novos tempos e mudar de uma maneira coordenada, que é uma tradição europeia quando não existem factores de conflito, começa a acumular-se a insatisfação e aparecem forças fora do sistema, que contestam o sistema, aproveitando-se disso com outros objectivos, isto porque é algo muito sentido. Hoje em dia, qualquer europeu sente que a indústria desapareceu, que certos empregos já não existem e que estámos reduzidos a uma espécie de parque de turismo do mundo. A grande indústria actualmente é o turismo e isso é visto com algo mau, raros países europeus sentem isso como algo de bom, sobretudo, na Europa do Sul onde esse fenónemo é fortemente sentido, como é evidente há forças que notam esse descontentamento e usam esses elementos a seu favor, procuram usá-lo para contestar outras coisas. Isso tudo em si não é uma atitude anti-democrática.

Mas, não é forma de perturbar a paz?
AJM: O grande problema aqui é que tal como aconteceu na Alemanha dos anos 20, que não se adaptou à mudança, criou o caos dentro da própria sociedade alemã e nessas circunstâncias tudo pode acontecer, a partir desse momento é que aparecem estas forças como o nazismo, ou outras. Na minha perspectiva dentro da UE há dois caminhos que se bifurcam, ou a Europa unida corrige as suas políticas de fundo e se adapta ao mundo actual e cavalga uma mudança que é controlada, calma, serena e democrática ou a mudança acontece mesmo, porque é impossível pará-la, pode-se até atrasá-la, mas é inevitável. Por exemplo, vimos no caso da Líbia e da Síria como é fácil destruir um Estado, a rapidez com que isso acontece e teve uma ajuda externa, neste caso, a europeia. Vimos como países aparentemente estáveis se transformam no caos e tudo pode acontecer a partir de agora, vemos uma guerra civil terrível que provoca milhares de baixas e permite o avanço do fundamentalismo islâmico, que é uma ameaça importante à democracia europeia.

Assistimos pela Europa ao crescimento desses movimentos de partidos extremistas que ganham cada vez mais poder nas urnas, mas em Portugal, isso não tem sequer uma expressão.
AJM: É verdade, Portugal é uma excepção, não é uma questão de extrema-direita ou esquerda, quer um, quer outro, em termos tradicionais são forças muito conservadoras e não são inovadoras. Não há dúvida que por toda a Europa isto significa um afastamento do voto em relação ao que são os partidos tradicionais do poder, ou seja, o descontentamento é muito grande, os europeus não estão satisfeitos como sabe, não gostam do que se esta passar, acho compreensível também não gosto. A Europa esta a decair a um ritmo impressionante e como europeu eu não gosto disso, ainda hoje vi uma reportagem sobre Itália que vai votar o seu sistema financeiro e que esta tão mal ou pior do que português e o que se via ao entrevistarem italianos na rua é que as pessoas diziam que iam votar contra, mas porquê? Porque são contra este governo, contra este sistema, qualquer que seja o tema votam contra, as pessoas não estão contentes, sentem que alguma coisa fundamental das suas políticas centrais esta errada e não gostam do que se esta passar, como não sabem em quem confiar, porque todo o sistema político é corrupto, é uma auto-reprodução, é um sistema clientalista, porque alimenta as clientelas.

Os portugueses também tem essa mesma opinião sobre o Estado, que vivemos num sistema corrompido.
AJM: No entanto, Portugal é a excepção, porque se olharmos para a França, a Itália, a Espanha, ou mesmo para a Polónia, a Hungria e a Inglaterra, em todos esses países, isso acontece. É uma tradição portuguesa, sempre tivemos dificuldade em gerir a mudança de fundo, normalmente adiámos. Lembro-me de uma história que é atribuída à Marcelo Caetano, poucos dias antes do 25 de Abril, numa conversa que tem com Freitas do Amaral e que ele conta nas suas memórias em que diz o seguinte, eu sou o comandante do barco, vejo que esta a ir para as rochas, vai naufragar, mas eu não consigo dar à volta ao leme, tenho de continuar neste rumo mesmo sabendo que vai afundar, eu não consigo arranjar uma alternativa” e de facto o sistema de Caetano naufragou isso ele viu muito bem, mas isto é a tradição portuguesa, não muda nada e de repente muda tudo com um preço muito alto a pagar, porque a mudança repentina é caótica e tende a destruir coisas que não deve destruir.

Não será também uma questão cultural, por não sermos um povo dados a extremos?
AJM: Não sei se não somos dados a extremos, no pós-25 de Abril houve extremos, não sei se não nos dámos a isso, mas desde à sua fundação Portugal tem um grande grau de tolerância, de abertura maior e os portugueses, por regra, o que é bom ao meu ver, tem um grande sentido humantário e talvez mais forte do que eventualmente a maioria dos europeus. Depois há essa tendência da parte má da moeda, que é o como gerir mudanças de fundo? Normalmente, implica desestabilizar os interesses instalados, alterar as coisas não de uma forma meramente cosmética, nisso até somos especialista, mas repare as coisas mudam na mesma, só que de outra forma, o 25 de Abril foi disso um exemplo, se pudessemos ter trazido a democracia como transitaram os espanhóis sem revolução teria sido melhor.

Sim, mas tiveram uma guerra civil.
AJM: Isso foi umas décadas antes, mas a transição espanhola foi gerida sem revoluções e sem tanques na rua, a portuguesa foi o que se viu.
Focando outro aspecto da sua palestra, abordou o Atlântico, o facto do mar português ter sido durante séculos alvo de muita cobiça, neste momento, verifica-se o contrário, não é visto como um ponto estratégico favorável e chegou-se quase a vias de facto dos americanos sairem dos Açores.
AJM: Não tenho essa interpretação, as coisas e a sua importância mudam e reveste-se de novos aspectos. Eu digo sempre que uma das grandes riquezas potenciais nomeadamente de Portugal para o futuro, sobretudo, é a sua plataforma continental. É o grande campo de matérias-primas, dos produtos do mundo futuro e estão neste momento a emergir tecnológias que permitem isso em todos os campos, a plataforma continental cuja soberania passa pela Madeira e pelos Açores é absolutamente essencial. Também não parece que haja uma saída efectiva dos americanos nos Açores, vimos que há um conjunto de agentes que de repente se começa a interessar pelas ilhas e que antes não se interessavam, por exemplo, a China já fez viagens do mais alto nível aos Açores, à Madeira ainda não, houve um contacto muito recente com um representante número um da política chinesa e já disseram de uma forma muito clara que pretende investir nos Açores, mas não através da criação de bases. Embora, verificámos que os chineses criaram duas bases militares no Índico, foi com o entendimento dos EUA, não em choque e no Pasquitão uma base militar foi partilhada com a China, portanto, há aqui um avanço em termos marítimos. Os chineses estão interessados pela nossa plataforma atlântica por uma razão muito simples, porque esteve fechado para eles a rota do Norte durante séculos, pelo Ártico, neste momento esta aberta uma parte do ano e possivelmente a curto-prazo o ano inteiro, e isso encurtou o caminho da China para à Europa e isto muda tudo. Os navios, através da do Norte, tem acesso ao Atlântico e à zona dos Açores e da Madeira.

Mas, acha que ao nível político interessa haver essa aliança com a China, estando nós inseridos no espaço europeu?
AJM: Não se pode colocar a questão assim, é muito complexa, tem de ser colocado no conjunto, eu estava a usar o exemplo da China que é um dos outros poderes interessado e os americanos não desapareceram simplesmente, apenas gerem o espaço de acordo com as suas capacidades financeiras. Os EUA actualmente, tem muito do que era a política britânica, nós mesmo que não utilizemos temos de estar presentes para os outros não usarem, ou só usar com a sua autorização e os americanos vão tentar que sejam eles e não Portugal a fazer cedências à China no espaço atlântico português e espero é que os americanos não tenham sucesso.

E acha que os políticos portugueses ao contrário do passado, são mais visionários e estão preparados?
AJM: Obviamente que não, como diria o general Humberto Delgado.

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