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Os ilhéus

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Trata-se uma viagem no tempo pelo bairro dos pescadores em Câmara de Lobos.

A vida num ilhéu era como estar numa ilha dentro da ilha. Estávamos rodeados por um mar de gente que não deixava espaço para o sonho, ou a poesia. O quotidiano era feito de palavras ríspidas, de gritos, de choros e de risos e onde se tentava, sem sucesso, esconder um pouco a nossa própria miséria das restantes 4,999 mil almas que coabitavam num espaço tão exíguo que não era apenas de um, era de todos. As casas encavalitadas umas nas outras não deixam margem para a privacidade, ouvia-se até mais tímido dos suspiros, o relinchar das portas ressequidas pelo sal anunciavam o apelo do mar salgado que levava os homens todos os dias à procura de pão para encher a boca. A vida aqui tinha sempre um sabor agridoce, o mar generoso dava com fatura, mas não poucas vezes tirava tudo também, muitos pescadores jazem em sepulturas não marcada na profundeza azul das águas e não debaixo de um manto verde bendito em terra, deixando para atrás hordas de crianças famitas. A aguardente também ceifava vidas uns diziam que o mal branco afastava a fome, outros o frio e outros ainda justificavam-se afirmando que ajudava a esquecer a maldição de se nascer miserável, tudo servia como desculpa para o imperdoável, gastar as parcas economias em algo que não era essencial.

As mulheres carregadas pela dor de imediato preenchiam o vazio com um buliço diário ininterrrupto e repetitivo que imprimia a ideia de aparente normalidade. A luta pela sobrevivência começava assim logo pela entrada da madrugada, umas partiam em busca das roupas das mais ricas para lavar e secar no calhau, enquanto as crianças mais pequenas brincam nas orla baia, outras vendiam o peixe conquistado ao mar na lota, as restantes mais afortunadas eram prendadas na costura, ou bordavam para ganhar uns trocos essenciais para os seus e da comunidade, porque o que era para de uma, era também de todas, ninguém estava só, ou abandonado, partilhava-se tudo, onde comiam uns, comiam muitos mais.

O único dia de descanso até para os pescadores era o Domingo, nesse dia escorriam pelas ruelas estreitas do ilhéu corpos cobertos de fatos negros e vestidos escoaçantes sarapintados de cor em passadas suaves, porque a maioria vinha descalço, uns seguravam os sapatos bem próximo de si para não os estragar na descida, outros partilhavam o par antes de entrar na igreja. Os dias de maior excitação geral era quando havia relatos da bola no único rádio existente naquele rochedo quase negro, uma das poucas pequenas moradias albergava o dito cujo objecto de culto que era colocado estrategicamente na janela para que todos pudessem ouvir, pequenos tufos de gente amontoavam-se por todo o lado silenciosamente para ouvir o radialista anunciar os lances de perigo que iriam determinar o destino do jogo. Os golos eram comemorados com grande algazarra, claro esta, dependendo do clube que marcava e passado a quase hora e noventa minutos de um chorrilho frenético futebolístico, as pessoas deixavam-se ficar mais um bocadinho para ouvir a seguir a grande senhora, a Amália.

A felicidade também tinha o seu lugar no ilhéu, as moças jovens casadoiras como tinham pouco ou nada para um dote e muito menos dinheiro para a boda aproveitavam as madrugadoras missas do parto para casar com um vestido de cor garrida que elas mesmas faziam, ou mandavam confeccionar na modista, assim celebrava-se não só a vinda do menino Jesus, como a vida de um novo casal para o mundo até que a morte os separa-se. As crianças eram logo bem-vindas, porque o padre dizia sempre na missa “crescei e reproduzei-vós” e como na verdade, não havia muito mais para se entreter, nascia-se no ilhéu. A existência dura, penosa e com muitas bocas para alimentar lançou muitos homens, ao igual que milhares de outros madeirense, para a emigração à procura de uma vida melhor e como rota de fuga ao ultramar. Os jovens mancebos menos afortunados eram mobilizados para a guerra colonial e na ilha dentro da ilha mais uma vez a rádio teve um papel crucial, religiosamente mães, avós, tias, esposas e filhas juntavam-se para ouvir a lista dos prisioneiros ou os cercados, como diziam, numa ânsia contida envolta em lágrimas por um nome e a sua respectiva graduação militar, quando nada acontecia nem era bom, nem era mau, era apenas um sinal que as preces tinham sido ouvidas. A revolução de Abril, na longíqua capital também chegou à Câmara de Lobos, através da mesmas ondas hertzianas, criando uma enorme comoção que levou que os ânimos exaltaram-se e a esquadra de polícia local foi local invadida, ouviram-se alguns tiros e houve um certo pânico, mas nada de mais grave a relatar e foi assim que a liberdade chegou a estas paragens, depois basicamente a vida continuou no ilhéu sem grandes sobressaltos.

A chegada da CEE é que mudou tudo no rochedo. O presidente do governo regional, o Alberto João Jardim, decidiu relocalizar as famílias para as novas habitações sociais construídas para o efeito, era a Madeira nova como lhe chamavam e o bairro dos pescadores foi demolido, no dia 22 de junho de 2004. Actualmente, no topo há um jardim onde se pode dar largas ao olhar e contemplar uma paisagem de cortar a respiração, onde se insere a Associação de Desenvolvimento Comunitário de Câmara de Lobos, segundo a coordenadora, Dina Rodriguês, as actividades desta instituição ao nível sobretudo dos jovens procuram “ter algumas oficinas a funcionar, às sextas-feiras e aos sábados, também temos o viva talentos que é um projecto que temos vindo a aperfeiçoar, através da oficina de vídeo e fotografia, porque a ideia é desenvolver uma curta-metragem. Nos períodos de férias e de interrupção escolar também usufruem das instalações, da mesa de pingo pong, da televisão, video e jogos. No entanto, é um público-alvo muito difícil de conquistar, é muito instável, árduo de trabalhar, mas tem um enorme potencial. Os adolescentes tem mais liberdade, mas não sabem o que querem fazer com ela e é complicado motivá-los, a ideia é criar um espaço atractivo para eles. Os seniors, por outro lado, usufruem do grupo de vozes, tem passeios, ginástica e dança é um centro ocupacional normal. O que tentámos implementar é uma vertente intergeracional, misturar toda a gente e temos obtido resultados positivos, embora ao início gerou alguma confusão. Ao longo do tempo houve utentes que ficaram cativados com este tipo de intervenção social, outros nem por isso, como em tudo, ganhámos e perdemos, é um trabalho ao longo-prazo”. E ainda mantém 60 habitações nas suas reentrâncias cinzentas, mas o que ficou lá gravado foi a minha memória e de muitos que lá nasceram e viveram e que retornaram para dar de caras com uma airosa e turística Câmara de Lobos.

O relato é baseado nos vários depoimentos de ex-moradoras do ilhéu, a Maria Ferreira, Odete Rodrigues e Inocência Pestana a quem agradeço enormemente e que foram de certa ficcionados, através de voz de um único narrador.

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