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O conductor de melodias

Escrito por  Yvette Vieira fts Alexandre Nobre

 

Jorge Salgueiro é um prodígio musical na área da composição, que tem direcionado à sua carreira também, na condução de orquestras e grupos musicais, recentemente é o maestro permanente do coro Vox e faz parte da direção artística do grupo de teatro “O bando”.

Qual é a sua primeira memória musical? Aquela que foi determinante para a escolha da música como forma de vida? Que o tenha inspirado para seguir a carreira de maestro e compositor?
Jorge Salgueiro: A primeira memória não sei dizer, mas tenho umas memórias muito fortes, os discos do meu irmão, ele tem mais nove anos do que eu, eram basicamente pop rock e rock progressivo dos anos 70, 80, eram muito presentes, porque ele comprava muitos discos. Mas, a primeira memória muito forte que eu tenho e na qual mais tarde vim a trabalhar, é a 5ª sinfonia de Beethoven, lembro-me de colocar o disco, na altura, era em vinil e recordo-me que esta música teve uma influência em mim, não apenas auditiva, mas física e lembro-me de saltar como se estivesse numa discoteca e é essa é a primeira memória do meu entusiasmo pela música. Depois sei exatamente qual é a música que me fez querer ser compositor é uma peça do século XIX do compositor alemão Carl Maria von Weber que escreveu vários concertos para clarinete e num desses, logo no primeiro andamento, num ensaio que eu estava a assistir, há uma frase que me emocionou tanto, que pensei que gostaria de ter a capacidade de escrever música como aquela pessoa de forma a comunicar aquelas sensações que tinha experienciado e lembro-me bem disso, foi talvez aí o momento determinante para me transformar em compositor.

E isso o levou a escrever a sua primeira composição aos 14 anos.
JS: Eu escrevi obras antes.

Nessa altura ainda era autodidata, ou já estava na escola de música?
JS: Era autodidata e daí o que eu vou descrever, durante o período digamos da adolescência e puberdade eu destruí algumas das minhas obras, porque achava que não eram muito boas, tinham sido escritas aos doze, treze anos e só restaram aquelas que eu achava mais merecedoras de ficar para a posterioridade. Hoje, tenho imensa pena de as ter destruído, a primeira obra foi mesmo escrita aos 14 anos, mas houve outras partituras antes que gostaria de as ter, nem que fosse no papel, porque era como escrevia nessa altura e tenho imensa pena de as ter destruído.

Tem escrito várias óperas e sinfonias e o que acho curioso é que usa muitas das grandes obras literárias nacionais, mas não só e ainda, utiliza poemas de Camões, de Sophia Mello Breyner, entre outros, qual é o processo que usa para compor essas obras incorporando essas palavras? Começa por ler a obra e só depois surge a música, ou não?
JS: Há um aspeto importante que necessito de salientar em relação as outras disciplinas artísticas como a poesia, a literatura, a pintura muito, o cinema, a moda, a arquitetura, o teatro e a dança, são tudo áreas que me inspiram e interessam imenso, são inputs, são inspirações e são também motores para que possa escrever obras. No caso da literatura, no geral, eu parto de textos que já existem, não é normal escrever primeiro para depois se colocar os textos, embora, eu próprio já escrevi textos. Agora, tenho tido colaborações e parcerias com escritores.

Mas, como se processa isso? Porque existe o tom certo para declamar um poema e como encaixa os instrumentos, ou como escolhe o instrumento correto para esse verso, para sublinhar uma frase, como é decorre esse processo?
JS: Isso é interessante. (risos) Teria de haver um estudo científico sobre isso, porque eu também não sei responder à sua pergunta com toda a propriedade. Eu acho que eu parto muito da estética em primeiro lugar, que pode condicionar a técnica. Um poema minimalista terá uma música minimalista, um texto mais expressionista, poderá ter uma partitura mais expressiva, sendo romântico, a música será mais romântica, tem sempre a ver com o aspeto estético-técnico. Depois, temos o enquadramento emocional, nós comunicámos através de emoções e daquilo de que falava há pouco, do tal input, essa tal inspiração através da literatura, dos poemas e da pintura que são também uma fonte de energia, que nos inspira a querer transmitir essas emoções, esse quadro de emoções que surgem, por exemplo, num poema. Eu tenho várias obras inspiradas em pintores e quadros específicos, há mesmo uma obra inspirada numa pintura de Marc Rothko, um artista que trabalha com poucas cores e tem até quadros monocromáticos, a partir de um desses trabalhos pictóricos eu fiz uma composição com uma nota só, portanto, o quadro só tem uma cor e eu parti desse constrangimento para escrever uma obra com 12 minutos em que apenas existe uma nota. Claro que, tenho de explorar essa dinâmica do timbre dos instrumentos, se a nota é tocada mais forte, ou mais fraca, ou com mais ou menos ritmo, isto é um exemplo, de como uma obra de arte pode influenciar tecnicamente uma obra musical.

Escreveu também várias óperas e algumas delas são em português?
JS: São todas em português.

Não é um tanto quanto estranho, já que se associa a língua italiana as grandes obras operáticas?
JS: Para mim não soa estranho, porque o português é a minha língua materna e nas óperas isso para mim, soa perfeitamente natural. Admito que para um não português ouvir cantar na nossa língua lhe pareça estranho, mas esse é o problema do predomínio universal do inglês. Nos séculos XVII e XVIII havia uma predominância da língua italiana e depois surgiram com Mozart e com outros compositores alemães óperas em alemão e também para as pessoas da época era muito estranho que se cantasse nessa língua, mas hoje em dia, continua-se a fazer as versões em italiano e alemão das obras de Mozart e o alemão não é uma língua absolutamente fácil de se ouvir e nesse aspeto comparo-o um pouco ao português. Agora, o poder cultural e económico de um país e a influência que tem uma Alemanha é completamente diferente do poder que tem a língua portuguesa. O caso da Rússia também é sintomático, para nós também é difícil ouvir uma ópera cantada em russo, porque há um predomínio da língua inglesa e italiana e de certa forma o alemão e o francês, o resto são línguas que são estranhas ao canto.

E é difícil escrever uma ópera em português? Fala-se em como é difícil escrever letras em português para a música pop e até a rock.
JS: Não, tenho essa dificuldade, porque conheço a língua e os problemas que coloca ao nível do canto. Terei sim dificuldade em escrever uma obra numa língua que não é a minha língua materna, ainda que possa conhecer bem o inglês e o francês, são sempre línguas onde terei sempre dificuldade, ainda mais em línguas que desconheça, uma obra em chinês seria muito difícil.

Quais são os desafios de escrever essas grandes obras? Óperas, sinfonias, o que é necessário para o fazer?
JS: Tem um problema grave nos dias de hoje, que é o tempo. As grandes obras, ao nível da duração, demoram muito tempo a ser escritas e hoje em dia, não há por parte de quem encomenda, a noção de que uma ópera deveria demorar no mínimo dois anos a ser composta. Pensar que vamos a estar a pagar um compositor dois anos para escrever uma ópera, que depois será apresentada uma ou duas vezes, é um grande investimento que dificilmente se concretiza. Os compositores têm de arranjar tempo para conseguir fazer isso e traz-nos uma grande dificuldade em termos de gestão do tempo. Por outro lado, as pessoas também não têm a disposição mental para estar a ouvir uma sinfonia com mais de uma hora, ou uma obra com mais três e é muito difícil convencer as pessoas a fazer isso, diria mesmo impossível. Mas, se conseguirmos levar o público as salas de concertos e ópera, aí, as pessoas rendem-se, porque estão dispostas a disponibilizar o seu tempo e estão disponíveis mentalmente para usufruir de uma sinfonia. É uma questão de quebrar preconceitos e nessa matéria as pessoas que não foram educadas e familiarizadas com a música erudita acham sempre que não vão gostar, depois quando assistem a um concerto ficam fascinadas.

O maestro, nos seus concertos não dispõem apenas de músicos, apresenta em palco por diversas vezes várias componentes, dança, canto, inclusive aplica ferramentas tecnológicas. Quando imagina uma obra em palco, já visiona na sua mente num todo?
JS: Quando sonhámos, sonhamos muito mais do que as pessoas veem. (risos). Os sonhos são algo fantástico e isso sabemos todos e os artistas quando sonham, mesmo acordados, é algo maravilhoso. O problema é que é preferível não sonhar muito alto, que não seja de tal forma impossível que não se consiga concretizar. Temos de adequar os sonhos aos meios que dispomos e depois ter a capacidade, talvez é essa a minha grande qualidade, de conseguir materializar os meus sonhos, mesmo com poucos meios. Digamos que a realidade fica sempre aquém dos sonhos.
Então imagina-o num todo, não apenas a música, o que vai apresentar no palco?
JS: Sim, num ponto de partida, existe uma ideia global do espetáculo, depois é como a muralha da China, se os construtores pensassem na quantidade de pedras que iam necessitar, nunca teriam construído a muralha, é uma pedra de cada vez. Então, depois desse processo do sonho em que visualizamos o espetáculo no global, a parte de composição é muito absorbente e importante e que vai ser determinante para o espetáculo. Portanto, depois, é por partes, é uma pedra de cada vez.

Na sua carreira como maestro tem estado a trabalhar em diversas orquestras e bandas filarmónicas, atualmente trabalha com um teatro e um coro. A sua vida profissional é muito diversificada e rica e isso demonstra que uma carreira é mais aliciante trabalhando com diferentes grupos, em diversos países, é isso?
JS: Em cada grupo em que estou há uma aprendizagem fundamental que não se tem nas escolas, que não se aprende nos cursos, nem que se obtém através da teoria. Uma coisa é o que aprendemos no curso e outro aspeto totalmente diferente é estarmos com os músicos e nessa circunstância adquiri experiência com bandas, muita experiência com orquestras, com música para crianças e para teatro onde trabalho há 20 anos. Eu, ainda não tinha tido uma experiência profunda com coros, esta foi uma oportunidade que senti que era essencial, o poder trabalhar por dentro e conhecer as idiossincrasias de um coro, as suas características e dificuldades técnicas que daí advém e isso só sabemos profundamente quando estamos dentro e esta oportunidade presente em que dirijo um coro em permanência é algo que nunca tinha feito. Trata-se de um projecto que me permita aprofundar o meu conhecimento e escrever obras para coros, uma vertente musical onde não tinha até agora muita produção.

É difícil trabalhar com diferentes vozes e fazer essa gestão de um grupo de em oposição as orquestras?
JS: Existem duas dificuldades, a primeira é que se trata de um grupo amador, poucas pessoas sabem ler música. Eles decoram as partituras e isso acontece com facilidade. Depois, eu sou um maestro em permanência, estou neste coro há um ano e três meses, isso quer dizer que não sou apenas maestro, sou gestor de pessoas, de recursos humanos, sou um amigo, por vezes, psicólogo e um mediador de problemas, há uma série de componentes, para além da vertente musical, que requerem um esforço mais suplementar do que apenas o artístico. Mas, que de facto é muito importante para o resultado em palco.

Ainda há um novo patamar, na sua vida profissional, que gostaria de atingir?

JS: Descansar um bocadinho (risos). Como referiu já fiz um pouco de tudo, mas gostaria de dirigir uma orquestra em permanência, ou um grupo musical profissional, mas a minha atividade principal é compor e nunca me posso esquecer disso. Tenho projecto de imediato para o próximo ano, mas tenho deixado que a vida me mostre novos caminhos e sinto que não fui apenas eu a contruir esse percurso decidindo para onde quero ir. Por isso, tenho de parar um pouco, mas há-de chegar esse dia e nessa altura vou decidir o caminho que devo seguir.


https://www.jorgesalgueiro.com/

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