Vamos falar um pouco da obra do seu pai. Agora que passou um ano, o que sente?
VSM: Às vezes, ainda não sinto. Mas, as coisas são o que são. É uma sensação muito difícil de explicar porque, com franqueza ainda não fiz o luto. Arranjei muita coisa para fazer e acho que isto é um mecanismo um pouco de defesa. Embora sejam coisas que quisesse fazer, a verdade é que decidi faze-las num espaço de tempo curtíssimo e em catadupa. Penso que há aqui uma fuga para frente, se é que se pode chamar isto. O que penso que é importante, para mim antes de mais, é continuar. Não me atrevo a dizer que tenho uma particular saudade, ou falta, comparando com outras pessoas, no mínimo seria uma certa prosápia. Falta-me a palavra dele, o dizer está certo. Antes, perguntávamos o que é ele que acha, ele ficava calado, meu pai nunca foi pessoa de dizer sim ou não, andava á volta das coisas, no fundo para nos levar a pensar. Tudo para pensar. Depois discutia-mos as questões certas, agora não há essa hipótese. Agora, tenho que pensar, o que ele pensaria? Não tenho certezas, não tenho seguranças. Nunca deixei de sentir uma falta muito grande.
Acha que o país, um ano depois, honrou o escritor?
VSM: Eu acho que sim. A verdade que continuamos a ter reedições dos livros dele. Entretanto vão sair outras coisas. Um livro que não acabou chamado “ espingardas, espingardas, alabardas, alabardas”, do qual escreveu 50 páginas e que seria uma publicação extraordinária. Ele deixou a obra dele, os pensamentos dele, as preocupações dele e penso que o caracterizou não foi só a parte da literatura digamos assim, também a postura cívica, do comportamento e do comprometimento, Isso é um aspecto que temos a obrigação de continua-lo.
Nunca se fala sobre a poesia que escreveu e que aliás cedeu para a música. Nunca se refere muito desta faceta dele.
VSM: É verdade. Particularmente nos primeiros, nos anos 60 e 70, escreveu poesia e cedeu algumas para serem musicadas e escreveu ainda para teatro e fala-se relativamente pouco sobre isto. No fundo, penso eu, é uma parte mais reduzida e foram menos obras. E depois porque apostou duma forma muito intensa na prosa, em particular, no romance, esses dois aspectos passam um pouco ao lado. É visível nas próprias reedições, nós vemos muitas dos livros, quinze por exemplo e na poesia e o teatro vê-se menos. É verdade.
Em relação aos romances, qual é o seu preferido? E porquê?
VSM: O ensaio sobre a cegueira. Primeiro, porque gosto da escrita do livro, ele abordou um tema fundamental da nossa vida de uma forma extraordinariamente bem conseguida e é o meu livro de cabeceira, onde volto, regresso para ler qualquer coisa, para tentar perceber melhor um fenómeno e mais ultimamente comecei a releitura do ensaio sobre a lucidez, estão os dois na minha cabeceira.
O que achou do filme do Fernando Meireles acha que captou a essência do livro? Na altura foi alvo de fortes críticas.
VSM: Gostei muito. Eu acho que a crítica foi dura e injustamente. Evidentemente não é possível transportar um livro com aquela carga para o filme. Não é possível ver tudo aquilo a acontecer página a página. Frase a frase é evidente. O que acontece? Teria de haver uma selecção das coisas mais fortes e importantes. Eu acho que ele conseguiu. Há uma imagem que é particularmente forte no livro, que é por exemplo o cão das lágrimas, a lamber a cara da mulher do médico. Depois, há a ida de mulheres para a camarata dos maus para servirem de objecto sexual essa parte é brutal no livro, mas não é agressivo no filme. É exactamente ao contrário. A passagem, a ida das mulheres é dramática e a do cão das lágrimas acaba por ficar um pouco apagada. Não é possível fazer duas peças sobre o mesmo tema, em que uma é o filme e outra é o livro. Não acho de maneira nenhuma, que tenha havido desvirtuação, mau tratamento.
Acha que o filme ganhou pelo facto de ser um realizador brasileiro, porque partilhamos a mesma língua?
VSM: O meu pai é muito querido no Brasil e o Fernando Meireles é um homem que tem um respeito enorme pela obra dele. E andou muitos anos a convence-lo a fazer o filme. E o meu pai acreditou que dali iria sair uma coisa em condições. O meu pai chorou.
Há a célebre imagem que andou pelo mundo inteiro sobre o beijo.
VSM: E é absolutamente verdade. Eu estava lá e vi como ele se emocionou e chorou várias vezes, porque de facto o filme é uma delícia. Muito bom. Sendo duas obras distintas e temos que ter isto em mente, não perde. E eu acho quem viu o filme, sem ter lido o livro, tem apetência para o ler. Quem fez o contrário não fica defraudado, com toda a franqueza.
Abordando a Fundação Saramago, agora quais são os objectivos para o futuro, passado este ano? Para além do trabalho de apoiar autores portugueses.
VSM: Temos três áreas de intervenção fundamentalmente, que é apoiar a literatura portuguesa, abordar as questões dos direitos humanos, da defesa do ambiente, a questão da sustentabilidade que são os grandes pilares de intervenção. Este ano como é evidente não pude acompanhar muito, porque foi um ano muito complexo, após a sua morte houve um vórtice de acontecimentos. Respostas que foi preciso dar, não sei sequer se a Pilar passou oito dias em casa, com toda a franqueza. Ela sempre andou de um lado para outro. Entretanto, as obras da casa dos bicos estão a decorrer, naturalmente, que a passagem para o edifício com a estrutura montada vai permitir avançar com os objectivos propostos. Eu posso dizer que este ano, nós tivemos que dar resposta a esta multitude de coisas que tiveram a ver com a morte dele. Foi exclusivamente isso. Ainda agora chegam condolências que é preciso agradecer e é preciso fazer um levantamento exaustivo do que já saiu. Agora vai sair um livro que é a Clarabóia, de 1948/49, que nunca foi publicado. A Pilar e a minha filha que são as pessoas que estão mais directamente envolvidas na Fundação tiveram de responder no imediato. Depois há a escolha do director que está definida, a pessoa que coordena e estrutura, esse aspecto está resolvido, já que a Pilar, sendo a presidente, não consegue fazer tudo. Depois com o espaço definitivo e o projecto consolidado tudo avançara a uma velocidade mais de cruzeiro. Embora do ponto de vista da literatura já houve várias coisas que foram feitas. Se o meu pai estivesse vivo, estes aspectos processar-se-iam mais rapidamente. Mesmo assim muito se fez após a sua morte. Abrir a casa no dia 18 de Março em Lanzarote, deu imenso trabalho com a abertura da biblioteca.Com a passagem de Pilar para Portugal e com a sede definitiva os projectos vão discorrer de forma célere.