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A dona do quinas

Escrito por 

Violante Saramago Matos esteve toda uma vida ligada a ciência, mas como diz o ditado, filho de peixe sabe nadar e também ela se dedica a escrita numa fase mais madura da sua vida. Nesta entrevista falamos de livros, como não poderia de ser do seu pai, José Saramago e da Fundação com o mesmo nome.

O facto de ser filha de José Saramago de alguma forma pesou quando decidiu editar este livro?

Violante Saramago Matos: Não, não. Demorou algum tempo para conseguir ultrapassar algumas barreiras, mas não pesou, nem deixou de contribuir ou não. Digamos que quer o livro que editei o ano passado, quer o de crianças este ano e terá continuidade não resultam, não foram influenciados de maneira nenhuma pelo meu pai.

E depois de editado considerou que as pessoas a julgavam por ser filha de…?

VSM: Não, por uma razão simples, não vou dizer que não seja natural que uma pessoa que chega a livraria e vê Saramago no nome, leia e até fica curiosa, mas não porque tenha sido dito. Vamos ver se for a uma livraria e ver o nome Castelo Branco, eu posso eventualmente pensar no Camilo, mas só por associação. Mas, que tenha influenciado de alguma maneira o acto de escrever, ou depois de publicado não senti nada.

Escreveu um livro infantil que é uma literatura difícil porque as crianças são leitores exigentes, teve isso em consideração?

VSM: Não, escolhi este tipo de literatura porque gosto muito de cães e aquele livro é a visão humana da vida do meu cão. Isto começou, ao contar umas histórias às minhas sobrinhas sobre o Quinas e elas pediam: Oh tia escreve um livro. Andaram os três à minha volta durante um tempo e eu decidi fazer-lhes a vontade e escrever um livro. Não pensava editar, isto era mais uma brincadeira para eles, mas depois comecei a perceber que poderia ter piada, podia ser interessante e estruturei uma série de livros. No fundo, eu gosto muito de crianças e aliaram-se duas coisas. Eu nunca contei aos meus filhos uma história para adormecerem durante à noite. Nunca, jamais em tempo algum tive imaginação. E não se pode dizer que este livro seja fruto da imaginação, isto é forma como ele, o Quinas, vai resolvendo, da forma como vai reagindo ao mundo, humanizado como é evidente, pelo menos interpretado por mim. Não há uma intenção pedagógica. É claro que um livro para crianças, é muito difícil escrever para elas, porque absorvem tudo o que está no livro. Para uma criança pequenina o livro é quase um Deus, aquilo que está escrito é o que é válido. É uma grande responsabilidade. Com um adulto, e estou habituada a isso, eles refilam e dizem, não é nada disso. Com a criança não, ela absorve e acredita que o que está lá escrito é verdade, por isso no meu entender a que ter cuidado, não se pode escrever um livro infantil dourando uma pílula qualquer de ensinamentos. Um livro para crianças deve ser uma história para divertir, evidentemente que obedece a alguns parâmetros. Primeiro, tem que ter uma linguagem que ela entenda, mas não pode ter erros. Mais depressa um adulto nos desculpa uma frase mal feita do que a nossa responsabilidade de dar a uma criança algo que está mal. Depois vai contribuir, enfim mais para frente, gostar da leitura, ou não. Ou ter uma reacção tão má com o livro que não quer saber da leitura. Estamos a contribuir para transformar um leitor no futuro. E depois porque realmente ela se tem de divertir. Quem escreve no fundo não se desdobra numa segunda personalidade e se eu gosto de cães por alguma razão tenho que o traduzir no livro. Se eu penso que ter as coisas é importante, não fazer patifarias é importante, isso está no livro ao nível do cão, ele a mastigar as figuras do presépio só porque acha piada, no fundo são estas coisas que passam, traduzida numa linguagem simples acessível para crianças com cinco e seis anos. A próxima edição do cão é na Holanda, vai ter experiências novas, vai andar na neve, foi o que ele fez, a comer neve, é um cão especial.

Quando começou a escrever o livro, isso remeteu-a a experiência do seu pai, no sentido, da dificuldade em escrever certas passagens, a angústia do escritor?

VSM: Sim, senti tudo isso. Embora sejam escritas completamente distintas e não são comparáveis. Mas, senti que havia passagens que não saiam bem, que não expressava o que pretendia, atendendo ao público a que se destinava. E portanto, retive algumas coisas. Esteve dois ou três meses quieto, houve leitura, reorganização e há reescrita de uma ou outra passagem. Há os acertos de redundâncias, retirar algumas expressões que se repetem fruto da linguagem, a acção, a colecção, um data de deles que é preciso retirar, sente-se responsabilidade. Não direi que seja do meu pai, é outra distinta.

Vamos falar um pouco da obra do seu pai. Agora que passou um ano, o que sente?

VSM: Às vezes, ainda não sinto. Mas, as coisas são o que são. É uma sensação muito difícil de explicar porque, com franqueza ainda não fiz o luto. Arranjei muita coisa para fazer e acho que isto é um mecanismo um pouco de defesa. Embora sejam coisas que quisesse fazer, a verdade é que decidi faze-las num espaço de tempo curtíssimo e em catadupa. Penso que há aqui uma fuga para frente, se é que se pode chamar isto. O que penso que é importante, para mim antes de mais, é continuar. Não me atrevo a dizer que tenho uma particular saudade, ou falta, comparando com outras pessoas, no mínimo seria uma certa prosápia. Falta-me a palavra dele, o dizer está certo. Antes, perguntávamos o que é ele que acha, ele ficava calado, meu pai nunca foi pessoa de dizer sim ou não, andava á volta das coisas, no fundo para nos levar a pensar. Tudo para pensar. Depois discutia-mos as questões certas, agora não há essa hipótese. Agora, tenho que pensar, o que ele pensaria? Não tenho certezas, não tenho seguranças. Nunca deixei de sentir uma falta muito grande.

Acha que o país, um ano depois, honrou o escritor?

VSM: Eu acho que sim. A verdade que continuamos a ter reedições dos livros dele. Entretanto vão sair outras coisas. Um livro que não acabou chamado “ espingardas, espingardas, alabardas, alabardas”, do qual escreveu 50 páginas e que seria uma publicação extraordinária.  Ele deixou a obra dele, os pensamentos dele, as preocupações dele e penso que o caracterizou não foi só a parte da literatura digamos assim, também a postura cívica, do comportamento e do comprometimento, Isso é um aspecto que temos a obrigação de continua-lo.

Nunca se fala sobre a poesia que escreveu e que aliás cedeu para a música. Nunca se refere muito desta faceta dele.

VSM: É verdade. Particularmente nos primeiros, nos anos 60 e 70, escreveu poesia e cedeu algumas para serem musicadas e escreveu ainda para teatro e fala-se relativamente pouco sobre isto. No fundo, penso eu, é uma parte mais reduzida e foram menos obras. E depois porque apostou duma forma muito intensa na prosa, em particular, no romance, esses dois aspectos passam um pouco ao lado. É visível nas próprias reedições, nós vemos muitas dos livros, quinze por exemplo e na poesia e o teatro vê-se menos. É verdade.

Em relação aos romances, qual é o seu preferido? E porquê?

VSM: O ensaio sobre a cegueira. Primeiro, porque gosto da escrita do livro, ele abordou um tema fundamental da nossa vida de uma forma extraordinariamente bem conseguida e é o meu livro de cabeceira, onde volto, regresso para ler qualquer coisa, para tentar perceber melhor um fenómeno e mais ultimamente comecei a releitura do ensaio sobre a lucidez, estão os dois na minha cabeceira.

O que achou do filme do Fernando Meireles acha que captou a essência do livro? Na altura foi alvo de fortes críticas.

VSM: Gostei muito. Eu acho que a crítica foi dura e injustamente. Evidentemente não é possível transportar um livro com aquela carga para o filme. Não é possível ver tudo aquilo a acontecer página a página. Frase a frase é evidente. O que acontece? Teria de haver uma selecção das coisas mais fortes e importantes. Eu acho que ele conseguiu. Há uma imagem que é particularmente forte no livro, que é por exemplo o cão das lágrimas, a lamber a cara da mulher do médico. Depois, há a ida de mulheres para a camarata dos maus para servirem de objecto sexual essa parte é brutal no livro, mas não é agressivo no filme. É exactamente ao contrário. A passagem, a ida das mulheres é dramática e a do cão das lágrimas acaba por ficar um pouco apagada. Não é possível fazer duas peças sobre o mesmo tema, em que uma é o filme e outra é o livro. Não acho de maneira nenhuma, que tenha havido desvirtuação, mau tratamento.

Acha que o filme ganhou pelo facto de ser um realizador brasileiro, porque partilhamos a mesma língua?

VSM: O meu pai é muito querido no Brasil e o Fernando Meireles é um homem que tem um respeito enorme pela obra dele. E andou muitos anos a convence-lo a fazer o filme. E o meu pai acreditou que dali iria sair uma coisa em condições. O meu pai chorou.

Há a célebre imagem que andou pelo mundo inteiro sobre o beijo.

VSM: E é absolutamente verdade. Eu estava lá e vi como ele se emocionou e chorou várias vezes, porque de facto o filme é uma delícia. Muito bom. Sendo duas obras distintas e temos que ter isto em mente, não perde. E eu acho quem viu o filme, sem ter lido o livro, tem apetência para o ler. Quem fez o contrário não fica defraudado, com toda a franqueza.

Abordando a Fundação Saramago, agora quais são os objectivos para o futuro, passado este ano? Para além do trabalho de apoiar autores portugueses.

VSM: Temos três áreas de intervenção fundamentalmente, que é apoiar a literatura portuguesa, abordar as questões dos direitos humanos, da defesa do ambiente, a questão da sustentabilidade que são os grandes pilares de intervenção. Este ano como é evidente não pude acompanhar muito, porque foi um ano muito complexo, após a sua morte houve um vórtice de acontecimentos. Respostas que foi preciso dar, não sei sequer se a Pilar passou oito dias em casa, com toda a franqueza. Ela sempre andou de um lado para outro. Entretanto, as obras da casa dos bicos estão a decorrer, naturalmente, que a passagem para o edifício com a estrutura montada vai permitir avançar com os objectivos propostos. Eu posso dizer que este ano, nós tivemos que dar resposta a esta multitude de coisas que tiveram a ver com a morte dele. Foi exclusivamente isso. Ainda agora chegam condolências que é preciso agradecer e é preciso fazer um levantamento exaustivo do que já saiu. Agora vai sair um livro que é a Clarabóia, de 1948/49, que nunca foi publicado. A Pilar e a minha filha que são as pessoas que estão mais directamente envolvidas na Fundação tiveram de responder no imediato. Depois há a escolha do director que está definida, a pessoa que coordena e estrutura, esse aspecto está resolvido, já que a Pilar, sendo a presidente, não consegue fazer tudo. Depois com o espaço definitivo e o projecto consolidado tudo avançara a uma velocidade mais de cruzeiro. Embora do ponto de vista da literatura já houve várias coisas que foram feitas. Se o meu pai estivesse vivo, estes aspectos processar-se-iam mais rapidamente. Mesmo assim muito se fez após a sua morte. Abrir a casa no dia 18 de Março em Lanzarote, deu imenso trabalho com a abertura da biblioteca.Com a passagem de Pilar para Portugal e com a sede definitiva os projectos vão discorrer de forma célere.

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