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O verdadeiro homem morcego

Escrito por  yvette vieira fts luca cistrone e Christian Dietz

 

Sérgio Teixeira é o único investigador credenciado sobre os morcegos da Madeira e a sua tese confirmou a vital importância das várias espécies para o ecossistema da ilha.

Quantas espécies de morcegos existem na Madeira?
Sérgio Teixeira: Nesta fase a partir dos dados que dispomos podemos afirmar que existem 5 espécies, mas uma delas não sabemos muito bem qual é. Obtivemos o género, mas não temos a certeza quanto a espécie especificamente, nunca foi capturada, só o ouvímos duas vezes portanto, as poucas tentativas que fizemos para gravar o som de forma a poder confirmar foram infrutíferas, porque é um espécimen que entra em modo silencioso quando caça as suas preças e nessas circunstâncias nunca se conseguiu obter nada, mas achámos que é o morcego-rato-grande, cujo nome científico é Myotis myotis. Depois temos o morcego da Madeira ou Pipistrelo da Madeira (Pipistrellus maderensis) que é um dos mais pequenos da Europa, é uma espécie endémica da macarónesia, existe no arquipélago da Madeira, nas Canárias e nos Açores, embora só tenha sido descrita nas ilhas açorianas há dois anos até a data não se tinha conseguido confirmar. O morcego-arborícola-da-Madeira(Nyctalus leisleri verrucosus) é uma subespécie endémica da ilha, só existe cá, nunca se encontrou em mais sítio algum, no passado poderá ter existido no Porto Santo e nas ilhas desertas, mas no presente não, apenas existe na Madeira. O morcego de Kuhl ou Pipistrelo de Kuhl (Pipistrellus kuhlii) até tem uma afinidade genética com o pipistrelo madeirense, tanto um como outro vieram da costa oeste africana para a Madeira, a cerca de 1 milhão e duzentos mil anos, por isso se diferenciou e tornou-se uma espécie diferente. Além disso, temos um exemplar muito engraçado que é morcego-orelhudo-cinzento (Plecotus austriacus). Portanto, estas são as espécies identificadas até agora, excepto o myotis que ainda não sabemos qual é a espécie, mas à partida será o morcego-rato-grande, até foram encontrados cránios deste espécimen nos Açores, em 1979, contudo, já não existem e aqui na Madeira só o encontrei nas zonas montanhosas do Funchal em 2004 e em 2010 na zona de costeira de Santana. Trata-se de um morcego grande, é um dos maiores que há na Europa. No caso Madeira, estas espécies conseguem coexistir porque exploram habitats e presas diferentes. Caso contrário para uma ilha tão pequena seria impossível ter tantas espécies, parece que cinco são poucas.

A espécie endémica como se distanciou das restantes, quais são essas características que tornam estes morcegos únicos?
ST: À partida quando colonizaram a ilha já estavam diferenciados uns milhões de anos contudo, é necessário esclarecer que existem dois tipos de morcegos, os microquirópteros, que são os de pequena dimensão e os megaquirópteros, que são animais de grande dimensão como se vê na televisão. Estes animais são mamíferos, não são aves, porque usam as mãos, os dedos cresceram, a pele esticou imenso e usam essa característica física para poderem voar, por isso são quiroptéros, ou seja, mão-asa. Ao contrário do que as pessoas pensam não são ratos voadores, são muito mais parecidos com o homem e com os macacos do que se pensa, porque quando foram descrito pela primeira vez por Lineu, foram colocados na mesma categoria dos primatas e só mais tarde é que foram reclassificados. Os espécimens que temos na Madeira pertencem ao grupo dos microquiroptéros e já existem há 50 milhões de anos, muito antes do homem e quando à ilha da Madeira surgiu no oceano há 5 milhões de anos essas espécies já tinham quase 45 milhões de anos de evolução no planeta, portanto, quando os portugueses cá chegaram e colonizaram a ilha os morcegos já estavam diferenciadas em termos de genéro, por isso, temos o pipistrelos, o genéro, madeirensis, kuhlii, nyctalus, myotis e plecotus, houve uma série de ligeiras adaptações, nomeadamente no morcego madeirense, tornou-se mais pequeno.

Mas, quanto é mede ao todo?
ST: Um adulto pesa 3 gramas, a sua envergadura até a asa é de 24 cm e o corpo do morcego mede 8 cm quando esta com a asas fechadas. É mesmo pequeno. Em vôo parecem grandes porque tem asas enormes, mas são mamíferos e como tal tiveram de adaptar-se as características do seu meio ambiente, a sua massa corporal teve de baixar para poderem voar de forma eficiente. A dentição adaptou-se aos tipos de insectos que encontrou na ilha e dos quais se poderia alimentar, de salientar que todas as espécies que existem na Madeira são insectívoras, portanto alimentam-se exclusivamente de insectos. Isso também aconteceu com o morcego arborícola da Madeira é mais pequeno que o seu congénere continental, o que é engraçado e até a sua dentição mudou. O plecotus é diferente, é um morcego muito similar ao que existe no continente, em termos de dentição e cránio há ligeiras diferenças, mas no geral esta dentro da amplitude morfológica das espécies que existem na Europa. De resto nunca conseguimos capturar um myotis e o Kohlii capturámos alguns, mas foram poucos, mas este espécimens está dentro do que se espera para esta espécie.

Referiste que os morcegos tiveram que se adaptar as condições da ilha, é por causa da orográfia, ou dos ventos cruzados?
ST: Não, normalmente os mamíferos quando colonizam ilhas, ou um território novo, dependendo da dimensão e recursos disponíveis, as várias espécies podem aumentar ou diminuir de tamanho. Até existe o caso famoso de uma ilha onde encontraram ossadas de elefantes anões, o mesmo se passou na Madeira com as vacas, em apenas umas centenas de anos, elas diminuíram de tamanho, porque o esforço energético de subir a montanha para poder-se alimentar é maior, o mesmo se passou com os madeirenses, no geral são de baixa estatura comparados com outras zonas da Europa, isso também acontece nos Alpes. Depende tudo do balanço energético, portanto, energia que é dispendida em relação à energia gasta, os morcegos nesse aspecto não são diferentes, os insectos de que se alimentam não existem em grandes quantidades em termos de espécies. Obviamente que no século XIX não havia grandes estudos, os naturalistas tinham poucos recursos e não podiam abarcar todas as áreas para poder efectuar trabalhos exaustivos e ainda temos de considerar as acessibilidades da ilha, ou seja, não tínhamos as facilidades que existem nos nossos dias. Como havia poucas publicações e devido as grande importações de espécies para os nossos jardins e hortícolas que aconteceram já no século XX e XXI. Assim, houve muitos insectos que foram introduzidos no território, são nativos prováveis e por isso não temos sequer a certeza se já existiam na Madeira, ou foram trazidas ao longos dos séculos XVI, XVII e XIX, o que se pode fazer mediante os estudos que se fizeram na época temos a certeza das espécies que já existiam na ilha, mas mesmo assim, dados esses que na sua maioria provém do século XIX. Para um morcego que já vive na ilha e que tem poucos insectos dos quais se pode alimentar, obviamente teve-se de adaptar para sobreviver e diminuir de tamanho, é necessário ver que apesar de existirem 30 espécies diferentes de insectos o pipistrelo madeirense apenas se alimenta de alguns exemplares e os myotis de outros.

Então quais são as espécies de que se alimentam?
ST: Não há estudos de dietas, nunca foram feitos, porque é impossível iniciar alguma coisas, a investigação nesta matéria nunca avançou muito, o que se fez mais foi tentar perceber quais as espécies que existiam na ilha, que é o trabalho base e onde é que existiam, porque havia informação conflituosa por partes das listas que existiam que se baseavam em avistamentos duvidosos e depois veio-se verificar com a minha tese, que havia umas discrepâncias entre as listas existentes e as espécies de facto visíveis no território.

 

Salientaste que na ilha houve um aumento do número de plantas e flores isso não aumentou a capacidade dos morcegos consumirem mais insectos por ventura?
ST: Sim, claro, recentemente, a partir mais do século XIX, temos mais espécies de insectos e algumas são predadas por morcegos, mas estámos a falar de um processo evolutivo de centenas de milhares de anos com as plantas que cá existiam, não podemos esquecer que é um ecossistema em que as espécies estão todas interligadas, plantas, insectos, morcegos e aves, portanto a evolução é um processo contínuo e as diferentes espécies vão-se adaptando ao seu meio e os morcegos adaptaram-se à ilha, com a colonização a sua vida sofreu uma alteração tremenda e ninguém sabe se não existiram outras espécies que entretanto se extinguiram, é um cenário possível.

Em relação ao myotis referiste que encontraram esqueletos nos Açores, aqui na Madeira avistaste esta espécie viva? E em que zonas da ilha?
ST: Sim, observámos espécimens vivos. Nas zonas montanhosas do Funchal como já referi, não é uma localização exacta e capturei alguns indivíduos com fins científicos o animal conseguiu passar num buraco muito pequeno na rede, porque trata-se de uma espécie que tem uma excelente capacidade de navegar em espaços muito reduzidos. Em 2010 visualizei um em vôo e usei um aparelho, o detector de ultra-sons, que são usados para ouvir morcegos e consegui apanhar alguns pulsos muito curtos, porque usava a mesma frequência que os myotis usam e depois o resto da suspeita baseou-se no comportamento,o animal começou a caçar num arbusto muito próximo, em modo silencioso que é uma característica dessa espécie. Este exemplar usa apenas a audição para ouvir os insectos, porque ao contrário do que se possa pensar existem algumas espécies de insectos que possuem uma membrana timpanada, tipo um ouvido rudimentar, que esta afinada com as frequências que os morcegos usam, por isso, para impedir que a presa fuja esta o myotis não faz barulho para poder ouvir onde anda o insecto e capturam-no sobre a superfície da planta, mas para fins científicos não é suficiente usar esta informação para confirmar a existência desta espécie de morcego na ilha.

Onde encontrámos as espécies endémicas da Madeira?
ST: O morcego da Madeira é relativamente comum em toda à ilha, os pipistrelos adaptam-se muito bem aos meios urbanos, agora não é abundante, as estimativas feitas para o livro vermelho de vertebrados de Portugal, apontam para uma população inferior a 1000 indivíduos adultos.

Então não vivem em cavernas?
ST: Os pipistrelos não, por natureza não são espécies cavernícolas, cada genéro tem adaptações específicas a um tipo de voo, de presa e habitat, nesta caso, são animais bastante adaptáveis, de uma forma geral abrigam-se em fendas nas rochas, por exemplo, nas zonas urbanas é possível encontrá-los debaixo de telhas e dentro dos blocos de cimento de construção. O morcego-arborícola da Madeira, já os vi em juntas de dilatação, mas por norma, como o nome indica, são animais que preferem as árvores mortas, os plátanos, na laurissilva adoptam os tis e os castanheiro também. Os plecotus são mais cavernícolas, preferem espaços amplos para se abrigarem, em especial no tectos, nas vigas, dos palheiros, porque necessitam de espaço para voarem ao contrários do pipistrelos e do nyctalus que se escolhem em áreas exíguas e só quando estão no exterior soltam as asas. Os myotis também escolhem edifícios abandonados e podemos avistá-los debaixo das pontes, o morcego de Kohlii é como o pipistrelo madeirense.

Estas espécies estão em perigo de extinção ou nem por isso?
ST: Eles estão com estatuto da espécies ameaçadas, outras vulneráveis, mas é uma questão que preferia não aprofundar, porque nunca foi feito um estudo populacional no verdadeiro sentido da palavra, baseamó-nos numa estimativa grosseira dos contactos que tivemos um pouco por toda a ilha. Um verdadeiro estudo envolve marcar os morcegos, encontrar os abrigos, fazer contagens, efectuar recapturas e isso nos daria uma estimativa mais fiel. No geral, são espécies muito ameaçadas, como disse, o myotis só o vi duas vezes num espaço de 14 anos e só isso já indica que é uma espécimen muito raro, os morcegos orelhudos, são muito complicados, porque mesmo com recurso ao ultra-som, emitem sons muito baixos, os ingleses até os chamam de morcegos sussurrantes, porque para captá-los no aparelho em boas condições, tem de ser mum dia perfeito, sem vento e temos de estar a uma curta distância, 2,5 metros no máximo. Quanto aos avistamentos quando se vê algum morcego a uma certa distância 15 a 20 metros sabe-se que é myotis, com o pipistrelo se conseguiria ouvir tudo. Outra vantagem é que podemos voltar a mesma zona, porque são espéceis filopátricas, já que se mantém fiéis ao local, ou seja, voltam sempre para casa e usam até o mesmo caminho das áreas de alimentação até o seu abrigo usual. Ao longo desse percurso usam até espaços temporários para se abrigarem, daí que seja importante até preservá-los, principalmente, se forem maternidades, porque nessa fase estão concentradas nessas áreas dezenas de morcegos juvenis. Houve um caso em que se encontrou num palheiro cinquenta morcegos orelhudos e foi até referenciada como a maior colónia em Portugal inteiro e apesar do dono ter mantido esse espaço fielmente, porque o proprietário gostava até dos morcegos e sabia imenso, entretanto aconteceu alguma coisa, alimentaram-se de insectos com pestícida, ou encontraram outros obstáculos ao longo do seu percurso de volta e infelizmente num espaço de quatro anos desapareceram todos.

Então quais são as causas de morte dos morcegos?
ST: As causas de morte podem ser incêndios forestais, ou destruição dos abrigos, devido ao crescimento urbano e acumulação de pestícidas nas hortícolas, os tratamentos químicos das madeiras dos abrigos, ou ainda, por transferência dos insectos de que se alimentam. Houve nos últimos anos uma doença muito grave que tem liquidado milhões de morcegos nos EUA, mas que ainda não chegou à Europa e não existe cura, é o síndrome do nariz branco, é um fungo que cresce no interior do seu nariz e quando o animal morre fica com o nariz branco. Existem espécies que migram no círculo polar, do norte do Cánada até a Noruega, mas depois regressam, mas é suficiente para trazerem a doença no futuro. No caso da Madeira, era importante preservar as nossas espécies, porque, por exemplo, o morcego arborícola da Madeira é o maior predador do bicho da castanha e que ataca também a maçã e a pêra. Para terem uma ideia um único morcego pode comer 3 mil insectos numa noite, eles comem 50 % do seu peso corporal, mas isto acontece porquê? Porque nas zonas temperadas ou frias os morcegos tem de acumular energia para hibernarem, porque o voo em si já é um dispendio energético enorme, quando estão a voar os morcegos tem mil batimentos cardíacos por minuto.

Mas, a ilha não tem um inverno rigoroso e eles na mesma necessitam de hibernar?
ST: Não, na Madeira não, mas entram em turpor, baixam o metabolismo o suficiente para não hibernar, especialmente quando esta mau tempo, em quedas de granizo, nos os dias mais frios em que não estão muitos insectos a voar, por isso, não vale a pena efectuar gastos energéticos desnecessários. Assim, nessas alturas durante alguns dias baixam o metabolismo e depois retomam a caça quando as temperaturas sobem, porque aí vale a pena o dispendio de energia. Uma das dúvidas que existe é quanto ao número de crias que tem por ano, por norma, na Europa é apenas uma vez e cada fêmea só tem uma cria, embora haja caso de gémeos. Aqui na Madeira como o clima é mais ameno temos indícios que se podem ter reproduzido mais do que uma vez por ano, contudo, não há certezas era necessário fazer um estudo nesse sentido. No entanto sabe-se que nas zonas tropicais as restantes espécies de morcegos do mundo reproduzem-se mais do que uma vez.

O que quer dizer que se esta espécie em particular desaparece-se era muito prejudicial para os agricultores?
ST: Bastante, sem dúvida, os agricultores sabem que no ciclo de vida dos insectos, em particular, das pragas, as fêmeas põem centenas de ovos e desses mais de 50% serão do sexo feminino que porão mais ovos, são milhares e cada um insecto que é comido pelos morcegos diminui as possibilidades de reprodução.

E os agricultores encaram positivamente os morcegos?
ST: Não. Nem as pessoas porque os morcegos tem uma má imagem. Normalmente, todos os animais nocturnos são associados ao mal e no caso da Madeira, existe quem diga que quando se vê um morcego se perde a alma por um dia. Mas, são apenas animais que tem actividade nocturna, por estratégia de sobrevivência da espécie, para evitar predadores e porque existem imensas borboletas nocturnas. Os agricultores deviam ser formados, houve até uma iniciativa minha de informação, através de um póster para a Feira de agricultura no Porto Moniz, há uns anos, infelizmente não foi possível levar a cabo, mas a ideia é mostrar que todas as espécies de morcegos da ilha são benefícas, porque embora comam diferentes tipos de insectos, acabam no conjunto por eliminar, ou pelo menos controlar, vários tipos de pragas hortícolas, ou seja, fazem uma limpeza em conjunto fenomenal. Os morcegos mantém o equilíbrio ecológico e quando este mamíferos desaparecerem o controle natural desaparece e poderá haver danos económicos para os agricultores. Deveríamos focar-nos nessas campanhas de sensibilização, bem como a criação dos seus abrigos especiais, para ver se estas espécies se fixam mais nas áreas agrícolas onde são mais necessários.

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