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O coreógrafo do subtil

Escrito por 

Rui Lopes Graça fui bailarino e actualmente, coreografo para a Companhia Nacional de Bailado (CNB), como coordenador de projectos especiais, bem como para o Ballet Gulbenkian, a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, o Ballet du Rhin em França, a Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola e ainda a Companhia Rui Lopes Graça. Para além da sua actividade como coreógrafo, é convidado regularmente a leccionar na Escola Superior de Dança e na Universidade de Stavanger na Noruega. Mais recentemente coreografou o espectáculo “Bichos”, baseado na obra literária de Miguel Torga, do grupo “Dançando com a diferença”.

Como coreógrafo o que nota que mudou nestes últimos 30 anos na dança em Portugal? A companhia de bailado da Gulbenkian foi extinta, os apoios à cultura diminuiram ao longo dos anos e até se fala que não há um público para o bailado clássico.
Rui Lopes Graça: Houve mudanças incríveis. Há 30 anos a dança não tinha a projecção que tem hoje em dia na sociedade. Havia até um certo tipo de dança que era conhecido, na época, através da companhia de bailado da Gulbenkian e que era apenas uma faceta do que representava o movimento da dança ao nível mundial. Com os eventos Acarte houve toda uma geração que coreógrafos e bailarinos que começaram a surgir e a viajar, a conhecer outras realidades e a transformar o movimento de dança no nosso país. O que acontece hoje em dia é que a dança esta muito bem representada, tanto ao nível de formação, como de criação apesar de termos muitas poucas estruturas de dança, que não são em grande número. Ao nível da formação no Conservatório Nacional temos dançarinos que tem um mercado de trabalho tanto em Portugal, como fora do país. A ideia que não se formam bons intérpretes em Portugal é uma coisa do passado, o que acontece actualmente é que a quantidade de pessoas que saem formados das escolas, em termos nacionais, não tem mercado para absorver tanta gente. Ao mesmo tempo na dança proliferaram outros conceitos e outras estéticas...

Fala da dança contemporânea?
RLG: Falo da dança contemporânea em todos os seus cruzamentos e vertentes possíveis, porque a dança mudou muito em termos criativos nos nossos dias. Isso reflecte-se em Portugal, não somos um país tão fechado ao exterior como estava há vinte anos, ou mesmo trinta anos. O grande problema que temos, não é em termos de intérpretes ou criadores, mas sim da possibilidade de desenvolver trabalho. Existem poucas estructuras, quase não há companhias a não ser de autor, que não é a mesma coisa que companhias de repertório, em que vários coreográfos podem desenvolver trabalhos com os bailarinos e é esse o nosso grande dilema. Em relação ao público, sou da opinião contrária há muito público para a dança, se num espectáculo isso não existe, deve-se tentar perceber o porquê, as pessoas tem uma enorme apetência pelos espectáculos de dança e então de ballet clássico nem se fala, basta dizer “lago dos cisnes” e a lotação esta sempre esgotada, pelo menos na CNB. É mais difícil para as companhias contemporâneas, porque para ver os clássicos há uma tradição mais enraízada, do que para coreografias mais avançadas, depois também depende dos coreográfos e das campanhias.

Nem quando se fala de um público urbano que esta mais sensibilizado, do que um que vive fora dos centros das grandes cidades.
RLG: Mas, isso é normal. Se as pessoas não estão sensibilizadas para um determinado tipo de eventos é necessários fazer isso. Se eu for para um sítio onde não há uma grande apetência pelos espectáculos de dança, eu tenho de criar um mecanismo diferente de divulgação e incentivo para que as pessoas vão ao teatro e se calhar depois de verem dificilmente não gostarão, a não ser que sejam propostas tão, tão específicas, tão fechadas num determinado tipo de gosto que só possam ser apresentadas num determinado circuito, mas aí é um erro levar essas propostas para esses sítios.

Quando abordou que faltam estructuras em Portugal para a dança refere-se aos teatros?
RLG: Não, refiro-me as companhias, porque teatros temos muitos. Temos também é uma carência de programadores, embora haja bastantes em Portugal, acho que muitos são muito seguidistas, existe um número reduzido de profissionais que programa de uma determinada forma e os restantes seguem essa mesma linha, como se estivessem a formatar um certo tipo de gosto e temos uma carência de agentes culturais que tenham um gosto próprio, esse é um aspecto. O outro é que há uma grande carência de estructuras para o trabalho de dança, companhias com centros coreográficos onde se possam desenvolver projectos e apoio financeiro para que possam ser desenvolvidos, não ser apenas para alguns nomes mais conhecidos e que possa abranger o maior número de pessoas. Depois temos a situação precária dos intérpretes no nosso país, nomeadamente a falta do estatuto do bailarino em Portugal. O não haver o reconhecimento de que se trata de uma profissão de desgaste rápido, toda a gente o acha, mas não no papel, não é reconhecido pela lei. Todos estes aspectos contam para o reconhecimento da profissão e do seu desenvolvimento.

Em termos do estatuto do bailarino o que é necessário reconhecer?
RLG: Quando é que um bailarino acaba a sua carreira? Como é que se reforma? E quando termina a sua carreira contributiva? Repare, um controlador áereo não se reforma aos 65 anos, assim como, as bordadeiras na Madeira que é considerada uma profissão de desgaste rápido, mas um bailarino não e ele dá cabo do corpo. É uma profissão de alto risco, já tiveram operações, tem dores nos músculos todos, partem ossos muitas vezes em palcos sem condições e actualmente a reforma para um bailarino é até os 55 anos, mas alguém dança até essa idade? Não. As pessoas devem ter condições de segurança, seguros especiais para este tipo de profissões, possibilidade de se reformarem aos 40 anos, por exemplo, e depois terem a oportunidade de reciclarem a sua vida. O que se esta a reformar aqui é o corpo. A sociedade deve um reconhecimento a estas pessoas, porque graças a elas é que essas profissões criativas existem.

Refere-se em termos legislativos?
RLG: Há muito trabalho feito, não esta é estabelecido, acredito que estará, mas actualmente estámos em contra-ciclo porque quando se fala das reformas pretende-se que as pessoas o façam mais tarde, não mais cedo.

Quando fala que é necessário criar centro para coreográfos, é por esse motivo que os profissionais tem de sair de Portugal?
RLG: Eu vou trabalhar fora quando me convidam e isto é a realidade de um criador em todas as áreas. Mesmo que houvessem muitos centros, ou companhias em Portugal que me convidassem para coreografar, eu nunca iria deixar de aceitar convites vindos do estrangeiro, porque é importante o nosso trabalhar chegar a outros sítios e a outras pessoas. É a ideia de globalização da arte, da criatividade é chegar o mais longe possível. Na realidade em Portugal não existem companhias para dar trabalho e satisfazer o público que procura espectáculos de dança, porque há muito mais do que possámos imaginar, o que é preciso é alimentá-lo, se damos pouco de cada vez e de forma irregular naturalmente perde-se o hábito do consumo desse espectáculo.

Para que os centros possam acontecer no futuro o que é necessário que aconteça?
RLG: É necessário que alguém tome a iniciativa. Já existem sítios em que se promovem projectos de acolhimento e desenvolvimento, mas é necessário mais pelo país todo, é preciso apoio para isso. Também são necessárias comissões para que se possam criar espectáculos e fazê-los circular pelo país.

Numa altura em que os apoios estatais são escassos acha que é preponderante mesmo sendo pouco ou nenhum? Muitas companhias defendem o Estado não devia ajudar as artes, aliás, que prejudica, porque os apoios quando existem são sempre para os mesmos, no entanto há quem defenda o contrário e ache que as artes necessitam sempre de incentivos públicos?
RLG: As artes precisam sempre de apoio público, porque se não fosse assim só se fariam espectáculos em função do ganho e as propostas artísticas nem sempre trazem público. A quantidade de pessoas não atesta a validade de um projecto, também não é porque a sala esta cheia que a obra é muito boa, portanto, se é dado dinheiro para a investigação e o desenvolvimento de outras áreas, como a ciência, onde se investe para encontrar algo que mais tarde vai ser usado por muitos, nas artes é a mesma coisa, há um investimento, porque isso é o futuro, mesmo que não saibamos qual vai ser o resultado. Temos muitos criadores cujo trabalho é exactamente esse, que é abrir o caminho e quando se faz isso, não se enche teatros, porque estámos a procurar e as pessoas ainda não reconhecem esse percurso. Assim, estas estruturas necessitam de apoio para desenvolver os seus projectos. Um espectáculo não é válido apenas porque enche plateias, isso não é verdade, o que enche é o que esta estabelecido e aí já não necessitam de tanto apoio como precisariam. Quando o gosto esta estabelecido é preciso mudá-lo, porque se estámos parados no tempo, não há avanço nenhum. Dizer que a criação artística não necessita de apoio é de uma total ignorância, é não pensar, é um preconceito, é estar a ser manipulado por pessoas que seguramente não estão a ter apoios, porque são os que dizem que vai sempre para os mesmos, se tivessem a ter não se queixavam. Eu não estou a dizer que o sistema de apoios esta correcto, o que poderá estar errado é a forma como é distribuído e isso é discutível. Tem a ver com gosto, porque quem escolhe são pessoas que gostam de determinadas coisas e é aquilo, se são as mesmas ou tem influência durante um longo período de tempo acabam por sempre serem os mesmos, isso não tem nada a ver com o apoiar as artes, mas sim, com os critérios de apoiar uma companhia. Na minha opinião para evitar esse tipo de situações era necessário que essas comissões não fossem sempre constituídas pelas mesmas pessoas, é necesário alterar os órgãos decisórios e isso é uma garantia da diversidade do apoio.

Vamos abordar o projecto de dançando com a diferença, quais foram os desafios que enfrentou nesta companhia muito particular?
RLG: Esta é uma companhia muito particular e foi o meu maior desafio. Quer isto dizer que as referências que um coreógrafo tem quando vem trabalhar nesta companhia, a forma como se comunica com os intérpretes varia de uma forma abrupta, em relação a como se trabalha com bailarinos habituados a um repertório normal, ou seja, onde há pessoas que tem formação de dança desde pequenos, porque possuem um entendimento totalmente diferente do que pessoas portadoras de uma diferença, dígamos assim, que vão apreender. Como é que faço chegar à minha ideia a estas pessoas e como vai ser executada? É um trabalho muito difícil e que necessita de um grande período de aprendizagem. Para mim isto foi um começo para abordar este tipo de linguagem, mas acho que é algo para a vida, é algo que leva muito tempo a desenvolver um conceito que permita criar espectáculos com estas pessoas. É extremamente difícil devido a uma grande diferença em termos de códigos de comunicação e isso é um desafio tremendo.

Os diferentes códigos de comunicação de que fala também se podem aplicam quando vai dar formação na Nourega?
RLG: Isso não tem nada a ver, estámos a falar de pessoas portadoras com deficiência. É diferente pedir a uma pessoa com trissomia 21 fazer um passe de valsa do que a outra que não o tem, o cérebro não opera da mesma forma. Embora, tenha uma anuidade da vida e a sua existência é igual a minha, só a apreensão da realidade reparte esta pessoa. Então é isso, dentro desta característica como posso produzir um objecto artístico? Isso é desafiante.

O que retirou desta experiência como coreógrafo para o futuro?
RLG: É que as coisas podem chegar ao público de uma forma totalmente oposta da qual estou a pensar e posso fazê-lo na mesma, ou seja, existem muitos canais e este tipo de experiências é muito bom para mim, porque me faz pensar que a forma como chego a audiência e que não é através de uma única mensagem, existem múltiplas formas e muito mais simplificadas do que aquelas que uso habitualmente. Neste espectáculo chegámos ao público de uma forma muito mais destilada, menos complicada, tem de ser ao ponto, não se pode estar com muitos floreados e no fundo cria-se uma síntese ao nível da comunicação muito grande, só se usa o essencial. Eu como pessoa tenho a tendência de complicar, de acrescentar mais, porque há a preocupação de não estou a fazer chegar o suficiente e isso é um erro, através desta experiência isso ajuda a simplificar cada vez mais, por de lado o que é acessório e ficar com o essencial.

É difícil transpor uma obra literária para a dança?
RLG: Eu nunca transponho uma obra literária para a dança. Eu parto de um livro para fazer um outro objecto. Possui o mesmo título, Bichos, mas não é o livro, esse já existe.

Para quem leu o livro o que poderá ver da obra?
RLG: Vai reconhecer coisas, nem sequer estão todos os contos, estão apenas alguns. Uma obra literária é suficiente por sí própria, não necessita de mais nada. Eu não gosto da ideia de fazer a coreografia à custa da obra literária, essa já existe, não tem interesse reproduzi-la. Eu a partir de um livro recrio outra coisa que a leitura dessa obra me mostrou e que despertam em mim um certo tipo de realidades que vou querer trabalhar através da dança. A minha postura é sempre a partir de um objecto criar uma outra realidade. Eu não gosto do figurativo.

É assim que se define como coreógrafo?
RLG: Eu não sei como me definir como coreógrafo, ando à procura há anos e quando eu o souber deixo de o ser. O processo é uma descoberta constante. O interesse é não saber .

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