O que me leva a seguinte questão que tem a ver com a literatura brasileira no geral, notei um certo tom crítico da forma como o negro é descrito, em particular, criticas Jorge Amado.
RSRS: Exacto. O nosso cânone literário é formado por escritores brancos. Temos de retornar ao romantismo, do século XIX, porque os autores literários começaram a pensar o Brasil, na sua identidade nacional, que passava obrigatoriamente pela questão do negro, o que fazemos com essa negrada toda e mestizagem? O Rio de Janeiro nessa altura era uma cidade negra, na época abolicionista e isso passou a ser um problema muito sério, porque queria se embranquecer o país e então como se havia de fazer? Os brancos que eram minoria e continuam a ser, na nossa literatura, no romantismo, ela não retrata o negro, o que ela faz? Ela eleva à condição do índio brasileiro, porquê? Porque ele não representa uma ameaça, ele já tinham sido dizimado no século XIX, ou seja, representava um índice de 1% da população, como até hoje. Então, elevaram à condição do índio como o brasileiro perfeito, o original.
Ignorando mais uma vez os negros.
RSRS: Dessa forma eles "eliminavam" à questão do negro. Depois quando o negro aparece de novo é no realismo, já mais próximo do final da abolição e do processo de proclamação da república, o negro quando aparece é de uma forma muito estereotipada, é o caso notório da Bertoleza, que é uma personagem de Aluísio de Azevedo, do romance, "o cortiço", é uma negra casada com um português, que é tratada da pior forma possível, ela trabalha como uma escrava para o João Romão, o marido, até que chega um momento em que ele decide vende-la para outro senhor de escravos e depois acontece uma das cenas mais terríveis da literatura brasileira que é a Bertoleza, ela comete suícidio com uma faca, cortando o próprio ventre. É uma cena impactante. O nosso cânone literário vem com toda essa questão de ser mulher negra, aí entra a obra do Jorge Amado, que é muito cruel para as negras, porque elas são tratadas como prostitutas, como Gilberto Freyre descreve no caso da "Casa- Grande &Senzala", em que é chamada a mucama, aquela negra escravizada apta para servir o senhor e iniciar sexualmente os seus filhos, essa não é a imagem que queremos para as nossas crianças e a nossa comunidade negra, nem para a nossa literatura. Por isso que nós criticámos e muito à obra do Jorge Amado e essa crítica que não aponta esses problemas para sua literatura.
E actualmente existem escritores negros brasileiros que focam essa questão de uma forma mais realista? Estou a recordar-me de Paulo Lins.
RSRS: Sim, ele é um dos nossos representantes. A literatura negra existe desde Luís de Gama que é um poeta do século XIX, era um negro alforreado, abolicionista, mas aí o paí dele o vendeu para outro senhor, como o seu bode, ele diz que todos na sociedade brasileira são bodes, é um poema clássico. Esta escrita atravessa a década de vinte, trinta, também com o Leno Guedes e o Solano Trindade, Eduardo Oliveira, chega a década de sessenta com o nosso João de Camargo que a gente chama de nosso baluarte, da nossa literatura brasileira, ele tem oitenta anos, extremamente lúcido e produzindo, tanto que em Novembro se publica um novo livro dele. No final dos anos setenta com o início do processo da lenta e gradual da extinção da ditadura militar surge a geração de "cadernos negros". É uma série em que no ano par publica poesia e no ímpar contos. E é de fundamental importância, porque pela primeira vez na história gráfica brasileira temos uma geração de autores negros, actuando colectivamente, que antes estavam dispersos, como Machado de Assis, Lima Barreto, Solano Trindade, que produziam a sua literatura sem a troca do colectivo, sem esse fortalecimento. Os cadernos negros surgem em 1978, em Dezembro será lançado o seu 38º volume, são 38 anos de produção colectiva de autores negros. Inclusivé, hoje em dia várias gerações já passaram por estes compêndios, que é mais nova que os cadernos negros. Trata-se de uma publicação de combate ao racismo, os autores que publicam os seus textos enfrentam o racismo e o combate de discriminação racial como principal motivo da sua literatura.
Esses livros tem um espaço junto dos 230 milhões de brasileiros? Que não seja necessariamente negro?
RSRS: O grande problema nosso e aí esbarramos com o problema do racismo, é que essas publicações não tem circulação ampla.
Então qual é o máximo que imprimem dos cadernos negros?
RSRS: As tiragens iniciais são de mil exemplares. Depois, são feitas mais uma nova tiragem com o mesmo número, é muito pouco. Mas, a gente enfrenta uma série de barreiras, das livrarias que não querem discutir a questão racial, das universidades que não querem trabalhar com esse material. Tanto que a maioria desses livros fica restrictos aos NEABUBS que são os Núcleos de Estudos de Afro-Brasileiros das Universidades Brasileiras, ou são pesquisadores negros de literatura, de sociologia que trabalham com os "cadernos negros". A literatura que é ensinada na universidade tanto em graduação, como pós-graduação, de letras não discute à questão racial. É, por isso, que os "cadernos negros" são textos de enfrentamento, que fala do ponto histórico, que é o seguinte, "existe uma história que só os negros sabem contar e poucos podem ou querem entender". É esse tipo de pegada, é essa voz que sempre foi excluída, que encontrou esse espaço para verbalizar a sua subjectividade do negro, ou da negra na autoria e concepção do texto literário.
Mas, Paulo Lins quebra esse silêncio, porque é um autor mais abrangente, publicado em vários países. Dirias que é bom exemplo de literatura negra?
RSRS: Verdade. " A cidade de Deus" é um romance referêncial para nós. É excelente, mas ai entra na questão das quotas. Na feira de Frankfurt, fomos o país homenageado, na comitiva foram 70 escritores, um negro, Paulo Lins e um índio, Daniel Munduruko. Naquela época fazia parte do colectivo literário um grupo de autores negros que publicaram uma nota de repúdio, levamos ao Ministério da Cultura e da Educação e denunciámos essa disparidade. Nós somos 52% da população, porque que é que nós na literatura não estamos representados? Porque apenas um e o mais grave foram as declarações da nossa Ministra da Cultura, a Marta Suplicy, dizendo que não havia mais escritores negros publicados no Brasill mas não só, também o curador dessa feira, disse que havia não tinha qualidade estética. Mas, há dois erros graves, uma ministra da cultura que não sabe que há literatura negra no Brasil e um curador da obra que entende que não havia qualidade estética, mas o que é isso de estético? Recentemente, a Regina Dalcastagne, doutorada em literatura, pela Universidade Federal de Brasília, publicou um livro chamado, "literatura brasileira contemporânea, um território contestado", onde ela fez uma volumosa pesquisa com quase 300 romances, de três principais editoras do Brasil e nesse livro ela concluiu em termos estatísticos que a literatura negra não chegava a 2%. Os personagens quando existiam eram mais uma vez estereotipados, o negro morria porque era bandido, a negra era prostituta, ou empregada, são coadjuvantes na trama, nunca protagonistas e principalmente caracterizou o autor, que geralmente é do sudoeste, de Rio de Janeiro e São Paulo, é ligado à área de letras ou jornalismo, é das melhores classes sociais, tem uma educação do nível superior e é branco, então você tem toda a questão racial, geográfica e social e são várias as intercepções em que o negro não esta presente. O escritor no Brasil tem uma imagem pré-definida.
Então como é que vocês que tem todo esse trabalho pela frente, de romper com todos esses cânones, tentar mostrar a literatura negra, o que fazem para chegar ao próprio público do Brasil?
RSRS: A nossa prática, eu e a doutora Lívia Natália, ela é professora da teória da literatura na Universidade Federal da Baía, em Salvador e eu estou a concluir o meu mestrado em Outubro, a nossa prática é trazer essa literatura negro-brasileira para dentro da academia, direccionar a sua pesquisa nesse sentido. A gente tem a perspectica de rasurar o cânone, que tem a ver directamente com os nossos problemas raciais, com o racismo. O nosso trabalho é esse, a Lívia trabalha na área de literatura brasileira onde se insere autores negros-brasileiros. Na minha dissertação eu faço um comparativo com Edson Rosa, um escritor negro-brasileiro com José Luís Almada, que é um escritor cabo-verdiano que lida com o aquilo que ele chama de afrosolitude na sociedade cabo-verdiana e aí se percebe que eu tenho dois objectos, que são dois escritores negros e os teóricos com que trabalho. Eu também privilégio os autores negros, nos lídamos com o epistemicídio, se não trouxermos os nossos téoricos, a academia não traz, é um deslocamento que fazemos, saímos da posição de objecto para a de sujeito na academia e isso implica trabalhar com a literatura negra e lidar com toda essa questão epistemológica.