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A quinta exportação da madeira

Escrito por  yvette vieira fts cecília vieira

A porta 33 promoveu um encontro histórico entre os fundadores do semanário “Comércio do Funchal” (CF), um dos míticos jornais do período fascista em Portugal, entre 1967 até 1975, onde se recordou a génese desse projecto editorial irreverente.

Corria placidamente o ano de 1967 numa ilha perdida algures no meio do Atlântico quando teve lugar o encontro improvável entre Artur Andrade, contra-baxista do casino, João Carlos da Veiga Pestana, proprietário e director da publicação “Comércio do Funchal” e um grupo de jovens publicitários da agência “foco” Vicente Jorge Silva, José Manuel Barroso, Vitor Rosado e o jovem estudante de medicina, Ricardo França Jardim que decidiram em conversa de café criar um jornal diferente de tudo o que se tinha visto até então… Para o efeito alugaram um espaço por 900 escudos por mês que se torna a sede de uma redacção muito jovem, a sua grande maioria na casa dos 20, que decide escrever sobre o que lhes bem apetecia, como recorda José Manuel Barroso, “desde futebol que nessa altura não se fazia, cinema, economia, cultura, política nacional e internacional, como erámos poucos inventam-se uma série de pseudónimos para colmatar eventuais falhas que daí pudessem advir”. Havia o problema do nome do jornal, porque como relembra Vicente Jorge Silva, “o projecto que gostavámos de fazer não visava o comércio da cidade. Um amigo nosso, o Louro, lembrou-se de havia um jornal açoriano que era impresso em papel salmão e depois achámos que essa cor do papel também seria importante para distinguir o jornal, o que acontece é que no Funchal não existia papel desse tom e só havia cor-de-rosa e assim foi, esse papel tornou-se um instrumento fundamental do jornal”. Vitor Rosado, contudo acrescenta mais uma versão “se bem me lembro, no momento era importante a cor e como não poderia ser vermelho, por razões variadíssimas, o cor-de-rosa era oportuno e vamos ficar por aqui”.

Ultrapassados todos os pequenos constragimentos iniciais normais de um projecto editorial muito jovem, o “Comércio do Funchal” arranca com as suas primeiras impressões de cerca de 4 mil exemplares, com um custo de 5 escudos, sem margem para uma potencial distribuição ao nível nacional, devido ao elevados custos de preços de capa que abrangiam os 50%. O destino, contudo, bafeja os audazes e graças ao seu pendor editorial cada vez mais de esquerda, sem ser esquerdista, essa voz pela diferença ultrapassou as barreiras naturais da ilha e chega até as mãos dos jovens universitários e militares continentais ávidos por informação, que passaram a representar um universo de 11 mil assinantes, tornando assim, o CF a quinta maior exportação da ilha da Madeira, precedido pela emigração, as bananas, os bordados e vinho Madeira. Ao longo das suas várias edições as posições politicas à esquerda foram-se radicalizando, sem que o jornal se tivesse assumido como porta-voz efectivo de nenhum dos grupos que já existiam no Portugal da ditadura Salazarista. José Manuel Barroso recorda, “o comércio existiu porque foi aqui, no continente não teria sido possível uma experiência deste género. Nós divertíamos com aquele jogo do gato e do rato com a censura. Esta questão de proximidade local e até o facto de estarmos distantes fez-nos estar de fora de algumas lutas políticas de Lisboa, erámos de esquerda, mas não erámos esquerditas e embora tentassem nos resistimos sempre, mantivemos a nossa autonomia e irreverência perante tudo isso”

Efectivamente, e ao contrário do que se possa pensar o CF era uma fonte legal de informação, já que passava pelo crivo da censura, que de certa forma era mais branda na ilha, o Funchal da época era uma aldeia onde toda a gente se conhecia e cumprimentava e essa insularidade beneficiou ao longo prazo o jornal. Cada página representava um campo de batalha de palavras e frases, onde se renegociavam alguns critérios de corte entre Vincente Jorge Silva e o próprio censor, também é preciso ter em conta, como sublinha o próprio, “havia uma relação com a censura que não era a mesma na rua de Misericórdia. Quando um jornal em Lisboa mandava os seus textos para a censura para serem vistos por um censor, não se sabia quem eles eram, na Madeira nós sabíamos, só havia um e essa foi uma das coisas que fez com que o CF, na sua fase de arranque e mesmo depois um bocadinho, obtivesse uma certa possibilidade de afirmação”.

Ao longo dos seus oito anos de existência o jornal foi encerrado pelo menos em três
ocasiões diferentes, a primeira delas teve lugar em Maio de 1968. Em Portugal, Salazar caia da cadeira, na chamada primavera marcelista, em França tinha lugar uma revolução estudantil que iria mudar o mundo e que foi noticiada pelo jornal, porque tinha passado pelo crivo do censor local. Quando os primeiros exemplares do CF chegam à Lisboa, a censura não se faz esperar e suspende de imediato o semanário. Uma interrupção desde logo refutada pelos jornalistas junto dos deputados regionais em nome da autonomia e que acabou por criar um incidente brurocrático sem precedentes entre as diferentes instâncias políticas nacionais da epóca, um cenário bizarro só possível nessa hegemónia facista, porque na altura o “comércio” era para Barroso “o porta-voz de ideais de auto-governo que entroncavam com a história da Madeira, eram ansiedades e desejos da população, porque era e continua a ser uma região periférica. Isso fez-nos pontes para uma certa ala do regime, sobretudo marcelista, que falava pela nossa voz. Nós tinhámos uma excelente relação com presidente da junta geral, com o presidente da câmara e os deputados do regime, havia uma comunicação, “o comércio do Funchal” dizia o que eles gostariam de dizer e não podiam por motivos óbvios. Fomos automistas na fase inicial, algo que mais tarde foi aproveitado pela direita regional, neste caso o PSD, já que a esquerda não soube pegar nessa bandeira na altura”.

Não deixa de ser curioso as diferentes leituras ao que o jornal se prestava ao longo da sua curta história editorial. Os madeirenses encaravam o CF como a voz da autonomia regional e no continente essa mesma natureza autonómica passava completamente ao lado da maioria dos seus leitores, porque o que interessava aos 2/3 do seu jovem público eram os artigos sobre matérias internacionais, locais, as discussões entre os reformistas e não reformistas e até as análise de alguns actos eletorais. O segundo e terceiro encerramentos acabou por despoletar nos anos de 1972 e 1973 que a prova de página passasse a ser em Lisboa, o que era um processo infernal, segundo Ricardo França Jardim, porque não havia sistemas de comunicação, “íam levar o jornal ao avião, que depois era despachado até os Restauradores e quando estava tudo pronto, a minha mulher que era funcionária pública na altura levava as provas de novo ao aeroporto e pedia a um dos passageiros que embarcavam para a Madeira que levassem as páginas. Houve uma vez tantos atrasos que imprimimos um jornal com apenas quatro folhas e na segunda página havia uma bola muito grande e curiosamente a censura ficou incomodada”. A revolução de 25 de Abril de 1974 dita a chegada de democracia à Portugal e ironicamente o fim do jornal, por bons motivos, para Vicente Jorge Silva, “o CF esgotou a sua função. O jornal representava a pluralidade da esquerda” que após a revolução passa a ser a liberdade de tudo e de todos e que permite entre outras coisas fundar livremente jornais e o resto pertence a espuma da história.

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