
Alegria, samba, sol. Violência, sangue, tiros. Assim é o Brasil. Mas este país fascinante é também Maria*. Com 52 anos, já salvou a vida de diversas crianças. Um exemplo inequívoco de como a alma se pode elevar até ao céu.
Salvador da Bahia, 13:00. O sol beija violentamente a tarde. O calor é asfixiante. A humidade, intolerável. Estranha a temperaturas tropicais, a minha pele branca cobre-se de gotas de suor. No limiar da desidratação, deixo-me seduzir por uma refrescante caipirinha. Pelo som da guitarra baiana que ecoa nas paredes do Mercado Modelo (com inúmeras lojas de artesanto, é um surpreendente inebriamento dos sentidos). E pelo azul repousante do mar. Extraordinária profusão de culturas, cores e cheiros, a primeira capital do Brasil deslumbra qualquer turista com a sua bonita face crioula.
Mas a beleza verdadeira, essa, encontro-a fora da cidade. Após uma curta viagem feita no carro de um amigo. Na aldeia de Maria. Situada no meio do mato, não possui asfalto nem eletricidade. No entanto, tem insetos e aranhas. Assim como casas paupérrimas. Os habitantes são numerosos. Todos com pele escura, gasta pelo sol. E um sorriso aberto que nunca termina. É então que avisto Maria. Recordo-me como se fosse hoje. O magro rosto sulcado pelas rugas. O riso contagiante. E os olhos intensos esculpidos pelas batalhas da vida. Como o desaparecimento misterioso do marido.
- “Boa tarde. Entrem, entrem. Nesta casa, há sempre lugar para mais um”.
Confusa, faço sinal ao meu amigo para recusarmos o convite. Lugar para mais um? Em que sítio? Só se for no pátio. A ‘multidão’ que enche as estreitas divisões – três na totalidade – quase não pode circular. O meu olhar incrédulo não passa despercebido.
- “Minha querida, o tamanho de uma casa não tem importância quando a afeição é maior do que o universo. Sentem-se à mesa. Há comida para todo o mundo”.
Paradoxo sublime
Como que hipnotizada, deixo-me conduzir até ao meu ‘lugar’ – um dos escassos pontos livres do chão. Um banquete digno de rei cobre a modesta mesa. Cheira a azeite de dendê. A feijão fradinho. A fruta tropical. A água-de-coco. E, sobretudo, a amor.
-“Gostas da manga”? Olho ao meu redor. Dois inesquecíveis olhos escuros encaram-me com brandura.
- ”Adoro. Sabe a sol e a verão. Qual é o teu nome”?
- “Clotilde. Tenho 14 anos. Meus pais morreram quando era bem pequenina. Maria me encontrou na rua. Foi então que vim viver com ela. Vem, vou lhe mostrar meu quarto”.
O quarto de Clotilde não é mais do que uma pequena cama. Ao mesmo tempo que exibe a sua ‘boneca viajante’ (“você sabe, ela já viajou até ao Rio!”), explica-me que divide o recinto com sete irmãs e irmãos. Entre os quatro e os 20 anos, apresentam fisionomias e personalidades totalmente distintas. A Sandra, por exemplo. Com os seus 15 anos maduros, deseja ser advogada. O Pedro. Sem hesitação, anuncia que quer ser marinheiro. Para “abraçar o globo”. O Fábio. De olhos violeta e longos cabelos dourados, sonha tornar-se no novo Caetano. Enquanto bebe a sua água-de-coco, dá uns acordes na guitarra. E canta. A sua voz de veludo dissemina felicidade.
Inspirada pela música, dirijo-me para o pátio. Deitada numa cama de rede, Maria deixa-se abraçar pela luz sedutora do sol baiano. Com o olhar cintilante de afeto, contempla sorrateiramente as crianças.
- “São todos seus filhos?”
- “Sim. Mas apenas os dois mais velhos são biológicos”.
- “Como? Adotou seis? E consegue cuidar de todos? Sozinha?”
- “Consigo sim. Salvei-os da pobreza ruim da cidade. Da solidão, orfandade, sede de amor. Das más companhias, criminalidade, eu sei lá. Em Salvador se vê de tudo. Tiros, bandidos, facas, sangue. A vida pode ser muito feia. Aqui vivem em paz. ”
Continuo sem entender. Como é que uma senhora de 52 anos consegue educar oito crianças sem auxílio? O meu ceticismo deve ser percetível. Com um sorriso desenleado, salienta:
- “Às vezes não é fácil, não. Mas tudo na vida ganha sentido quando agimos com amor. Os seres humanos são todos meus irmãos. Sempre que ajudo um, meu coração ganha asas. Meus filhos me dão tanto, menina. Eles são minha coragem, inteligência, sensibilidade. Eles são quem sou”.
Que espelho inelutável de altruísmo! Estas sim, são palavras de ouro. Pronunciadas numa aldeia perdida no meio do nada. A água dos olhos insiste em rebolar pela minha cara. Mas o pior é a voz das lágrimas. Uma galinha cacareja subitamente. Estou-lhe para sempre agradecida.
De regresso a Salvador, penso neste país camaleão. Aqui descubro a história de uma vida exemplar. Sou Maria e oito crianças. Assisto a um espetáculo de samba. Sou cor, alegria. Escuto tiros, vejo sangue e rostos feridos. Sou violência, instabilidade. Assim é o Brasil, um sublime paradoxo. Como muito bem resume Gilberto Gil, esse génio da música, em “A Raça Humana”:
“A raça humana é a ferida acesa/Uma beleza, uma podridão/O fogo eterno e a morte/A morte e a ressurreição”.
*O nome de Maria e das crianças são fictícios. O texto está de acordo com as novas regras do acordo ortográfico.




