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O retábulo

Escrito por  yvette fts filipa abrantes e cora teixeira

 

A capela-mor Sé do Funchal, do século XVI, esta a ser alvo de uma dantesca intervenção de conservação e restauro à cargo de uma equipa multidisciplinar de profissionais de vários quadrantes, nomeadamente em termos históricos e arquivístico por Isabel de Santa Clara e Rita Rodrigues, em parceria com o Laboratório José Fernandes, através das especialistas Mercês Lorena, na secção de pintura e Elsa Murta da área da escultura e talha, que coordenam uma jovem equipa de conservadores e restauradores madeirenses. Um períplo que gostariam que me acompanhassem desde o rés-do-chão até o tecto da capela-mor.

"A intervenção começou dia 1 de Abril de 2013 e termina em 30 de Março de 2014, depois é prolongado por mais dois meses, até o mês de Maio, porque igreja tem de estar pronta para os festejos que começam entre 8 à 15 de Junho de 2014", afirma Elsa Murta, que apresenta as peças restauradas na área de escultura e calha.

São três os elementos do retábulo que irão ser apresentados:

A paixão de cristo acompanha a vida dos apóstolos e esta peça é um deles, alguns tem elementos iconográficos que conseguimos perceber quais são, um tem a cruz em xis, já sabemos que é o Santo André. Depois temos Zacarias e o terceiro é um anjo de música.
O apóstolo estaria colocado no último andar, na fiada da paixão de cristo, Zacarias no velho testamento e penso que iconográficamente ele acampanhava a vida da virgem Maria, no fundo os que eram da casa de David, no segundo nível. O anjo músico estava à volta do sacrário, não quer dizer que seja uma figura do velho testamento, ou relacionada com as pinturas, mas esta colocado no primeiro nível, é uma figura diferente, é do século XVIII, também tem muito valor, mas é barroca, não segue a estética de todo retábulo. No entanto, é uma das questões em discussão, se vai ficar ou ser substituído por uma figura da mesma época, mas serão coisas que vão ser avaliadas com uma equipa grande a quem a igreja pertence.

O terceiro elemento é uma chambrana, é um elemento superior da pintura normalmente denominada de balbaquino que se vê aqui neste retábulo, em que todos os níveis deveriam ter esses elementos com dimensões diferentes. As pinturas tem algumas marcas da sua existência, mas neste momento já são inexistentes. Existe muita documentação que fala que durante os primeiros anos, houve sempre ataques as igrejas, os corsários assaltavam com frequência estes espaços sagrados e com certeza eram elementos muito fáceis de agarrar para subir e que se partiram e os que existem estão danificados e foram colocados elementos novos.

 

Depois de trabalhar muito sobre o material e passar muito tempo pelas mãos, porque no fundo são acções que são repetidas no mesmo sítio, começa-se pela limpeza das poeiras muito pormenorizada em todos os pormenores dos detalhes, e aqui na Madeira é muito específica, porque vem do basalto, é muito escura, preta.

A primeira limpeza é feita com um elemento orgânico muito usado que é o "white spirit", normalmente os brasileiros fazem uma tradução que é água rás mineral, não é vegetal, é um destilado do petróleo, mas é completamente inócuo, que não traz nenhum problema as estructuras, mesmo nas pedras e é muito usado como solvente para limpeza superficial, para as manchas escuras e que desde sempre usámos em recuperação e restauro.
Hoje em dia é muito difícil que os nossos estagiários e novos profissionais adiram, que é fazer a limpeza com saliva, porque tem enzimas, e estas fazem a limpeza, já que este tipo de manchas são gorduras, sujidades naturais. Então para evitar este tipo de situação, os italianos desenvolveram uma saliva sintética, que também é usada em medicina em pessoas com problemas nas glândulas salivares, é para bochechar. No nosso caso limpa muito bem os tons de encardação, em inglês é spit cleaning.

Os materiais usados são todos naturais, temos uma resina natural extraída de uma árvore que é dissolvida em pequena quantidade com uma cera de abelha branqueada, depois de derretida forma estas placas de cera com resina que são diluídas e aplicadas sobre os elementos. Se repararem já tem essa resina, esta camada só é aplicada depois de estarem limpos. O objectivo é realçar o brilho do dourado.

O papier marché é para tapar os buracos que foram feitos para fixar os elementos no retábulo, mas são tardios, porque eles não tem meio de fixão, alguns buracos sugerem a colocação de asas, mas este elemento é um apóstolo e não um anjo.

Não vamos recuperar, porque as esculturas não tem praticamente adições, faltam muitos fragmentos, e estão em altitude e não vão fazer grande diferença no elemento, existem algumas que tem adições muito grosseiras na base para poderem ser colocadas nas nichos e que muito possivelmente não pertenciam ali, porque quem idealizou este conceito sabia onde deveriam ser colocadas as esculturas. Quem veio atrás, quem fez o grande restauro no século XVIII, no início, fez a parte decorativa, fez melhoramentos, mas concerteza os retirou e não os colocou no mesmo sítio e se não cabiam num determinado local colocava-se um pedaço de madeira pintada de azul e esses elementos retirámos.

Havia muitos repintes e redouramentos que foram fáceis de retirar, porque foram feitos sobre a poeira e conseguiu-se fazer o destacamento. Depois há a fase de integração com a folha de ouro, apenas em pontos que foram efectuados de novo e que estavam muito escuros, que é pintar ao tom de, para não parecer tudo dourado, porque não fazemos redouramentos das peças. É também aplicada esta camada de cera no mesmo sítio, mais tarde é retirada e só depois é que esta pronta. São muitas fases sempre no mesmo sítio e depois acabámos por descobrir muitos elementos, muitas coisas que à primeira vista não se iam encontrar, ou pelo menos com uma visualização não se conseguiam ver.

 

 

 

A leitura iconográfica do retábulo pode ser de vários pontos, vários momentos, não quer dizer que seja de cima para baixo, ou de baixo para cima, neste sabemos que é da esquerda para a direita.

"No primeiro patamar são as pinturas ligadas as cenas da eucarístia", elucida a restauradora, Carolina Ferreira. "As duas obras da ponta são do antigo testamento, a apanha do maná esta pronta em termos de intervenção falta só a aplicação da camada de proteção final e na cena de Abraão e Abimeleque esta na fase do retoque. As centrais são do novo testamento, as cenas da ceia esta na fase do levantamento do repinte, podem verificar que há uma diferença no pano de honra, o vermelho original é diferente. Houve surpresas, ambas as pinturas foram totalmente repintadas e foram ao gosto da época e logo quando é efeito esse levantamento há sempre diferenças nos panos, nas vestimentas, e mesmo as cores, as originais são mais vivas. Há também queimaduras de velas, já que este é o nível mais baixo, tendo mesmo carbonizado a madeira, eram pinturas com grandes lacunas, daí terem sido feitos os repintes.

O levantamento efectuado é total, porque foi feito com base em todas as análises e exames que foram feitos previamente. Não se chegou aqui e decidiu-se começar a levantar, foi feito levantamento da estilografia e das camadas que existem e tudo isto foi feito camada a camada para ter a certeza do que se estava a levantar".

"As radiografias foram outro dos instrumentos utilizados no levantamento e foram importantes para determinar se existia alguma pintura por baixo, daquilo que é visível e ver se há repinte ou não", elucida Mercês Lorena, coordenadora da pintura. "É pintura a óleo sobre a madeira, o equipamento é que veio até aqui, não se retiraram os quadros. Foi feita radiografia digital, a chapa é colocada por detrás, mas conseguiu-se colocar porque havia espaço. Nas duas com repinte foi feita uma imagem integral, nas restantes que não foram repintadas foi só em alguns pormenores, não havia essa necessidade. É um trabalho demorado, dificil e exige uma grande logística. Na pintura há quatro coordenadores restauradores e cada um é reponsável por três pinturas uma de cada andar. É um ano para cada três pinturas."

"O segundo nível é a história da virgem, a anunciação, a natividade não se viam os pormenores, os animais, não se via a arquitectura, o pentecostes e a assunção da virgem aos céus, são pinturas que foram alvo de restauro", como clarifica a jovem restauradora, Joana Julio.

 

"O terceiro nível é Cristo no horto, a paixão, à caminho do calvário e a ressureição já tem a restauração concluída e a descida da cruz esta na fase final. As pinturas estavam muito escuras. No paínel central esta uma pintura sobre tela que não faz parte do conjunto inicial, mas foi colocado onde se podem ver marcas que foram encontradas. A pintura tem as dimensões do espaço, mas sabemos pelos lados que fazia uma moldura e colocava-se a pintura ao centro, isto era o calvário, temos a noção que havia três nichos, a figura central que seria jesus, nos flancos a virgem Maria e São João, teria tido uma decoração exuberante, nota-se pelas marcas e as partes ocas seriam de uma talha lindissíma, temos um elemento circular e tudo foi pintado com azul azurite, era um pigmento caro e quando houve repintes usaram o que havia, que é um azul mais claro. Encontrámos numa caixa alguns elementos de talha, que poderão ser deste nicho, pensámos que ao longo do tempo foram partindo e havendo faltas e a solução terá sido tirar tudo e colocar a pintura e resolveu-se o problema. A pintura não esta assinada e nas radiografias não aparece nada, há quem diga que poderá ser do Martim Conrado, não sabemos, haverá semelhanças de estilo", explica o restuarador conservador, Paulo Olim.

 

Elsa Murça volta a acompanhar-nos no topo informando os presentes, que "as madeiras não estão empenadas, o que acontece muito em retábulos com uma certa idade, este não tem esse problema, as doenças da própria madeira é ter nós, não ter o fusco completamente direito e rachar facilmente. Estas são madeiras de qualidade extrema e pode indicar que vieram daquelas zonas onde os flamengos iam buscar as suas árvores, em áreas onde havia a garantia de uma crescimento adequado, sem grandes tempestades, o chamado carvalho do báltico. Depois as árvores eram marcadas com símbolos especiais e isto esta ser estudado, se as que encontrámos aqui serão as mesmas ou não. Tem é ataques de insectos, mas como diz a nossa biológa, é madeira isto é tudo biologia, temos de combater e fazer desinfestações, não podemos manter os espaços estanques e estagnados, devem ser limpos, abertos e sacudidos, faz parte da prevenção.

A diferenciação surge no tipo de base, alguns são de pedra e outros de madeira, mas o carvalho foi a madeira usada. Todos estes elementos tem caracteristicas da escultura flamenga, embora não tenham marcas, nessa altura os artistas eram muito exigentes com o seu trabalho e marcavam com símbolos muito específicos conforme a cidade em que eram feitos, Bruxelas, Antuérpia e Gant. Este acho que tem a tipologia da escola de Malim, mas não tem marcas, porque provavelmente não foram feitos lá, temos a interpretação dos artistas. Naquela época eles entravam em Portugal tanto por mar, como por terra vindos de Espanha e conforme as encomendas iam andando de um lado para o outro. Pode ser um artista que aprendeu em Malim e tenha vindo cá fazer este trabalho. Ainda esta por determinar se este trabalho foi feito cá na ilha ou foi montado cá, ou se já veio pintado, ou que foi feito fora. As pinturas revelam indícios de uma execução diferente, as esculturas são todas contemporâneas.

 

Realmente no topo notam-se duas mãos, há uma pessoa que faz uma coisa mais fina e há uma outra que o faz com a mesma escala, mas é diferente.
Este lado os elementos tem hastes finas, possuem elementos marinhos com algas com bolas e depois temos outro lado mais grosseiro não tem esses elementos. É tudo esculpido na madeira, há elementos que foram recolocados e que encontrámos numa caixa, depois existem aqui retoques mais escuros que não vamos restaurar porque ao longe não se consegue ver a mancha preta, não refizemos formas, nem redouramentos, vamos apenas dourar os elementos mais escuros. Não vamos fazer resconstituições. É uma estructura bem pensada, vê-se os pregos em ferro, que nunca foram mexidos, nunca houve nenhuma deslocação, os retábulos que se conhece desta época ou estão muito dourados, ou foram alterados na sua decoração, ou foram removidos e colocados em outros sítios, normalmente sobrevive a pintura e não o enquadramento.

O escudo de Portugal não tem a mesma dimensão do que esta por baixo, vê-se que há continuidade na madeira há um bloco que foi esculpido em forma de talha, tudo isto é original e vemos também que tem marca. Isto é uma obra flamenga que depois foi montada cá, e quando viram o escudo disseram que não era igual obrigaram-nos a fazer outro".

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