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Sintra, conto do mau malandro

Escrito por  Ana Bernardo


Castelos e palácios encantados. Natureza luxuriante. Bela e majestosa, Sintra é normalmente associada a cenários de contos de fadas.

Neste domingo de outono torna-se também palco de uma inacreditável estória de malandragem. As vítimas já não se contam pelos dedos. Quem será a próxima?

- «Tlim, tlim». O barulho metálico da moeda a cair no recipiente escuta-se em toda a carruagem do comboio Lisboa/Sintra.

- «Muito obrigado. Deus vai recompensar a sua boa alma». Olho ao meu redor. Um homem pequeno e frazino esboça um sorriso cínico de gratidão. Tem cerca de 40 anos. Manca a olhos vistos. Inúmeras rugas sulcam-lhe o rosto moreno e barbeado. Os minúsculos olhos castanhos assemelham-se a frinchas. Com a voz rouca toldada pela fadiga, prossegue a sua ladainha:

- «Por favor, ajudem o manquinho. Estou sozinho no mundo, não tenho dinheiro para sobreviver». A reacção das pessoas é surpreendentemente distinta. Há quem não hesite em colocar dinheiro no velho copo. Mas também se ouvem vozes revoltadas:

- «Aposto que não tens qualquer doença. Vai trabalhar, seu preguiçoso».

Já na plataforma da estação, tento avistar o «manquinho». Uma tentativa infrutífera. Rapidamente, chego ao meu destino. Sintra abraça-me sem reservas. O seu toque ameno e sereno faz esquecer o bulício do quotidiano. Declarado Património Mundial pela UNESCO, este local exuberante murmura inúmeros segredos. O Palácio Nacional de Sintra (igualmente conhecido como Paço Real ou Palácio da Vila), por exemplo. Enfeitado pelas gigantes chaminés gémeas em forma de cone, foi residência dos mouros aquando da ocupação árabe em Lisboa. Desde 1147 até à proclamação da República, em 1910, torna-se residência real.

A tarde acaba de nascer. Enquanto percorro as delgadas ruas do bonito centro histórico, encontro um restaurante despretensioso. O local perfeito para reconfortar o meu estômago vazio. Após devorar a melhor açorda de bacalhau da minha vida, reúno energias para prosseguir o meu percurso.

O malandro espreita na serra
Próximo destino: Palácio da Pena. Um verdadeiro cenário de contos de fadas. O deslumbramento impregna-se na minha alma. Considerado o mais admirável exemplar de arquitectura romântica do nosso país, data de 1839. Inspirada nos castelos Schinkel do centro da Europa, a sua arquitectura combina de forma genial os «estilos» mouriscos, góticos e manuelinos.

Inspirada, sigo caminho até ao Castelo dos Mouros. Situado a três quilómetros e meio do centro histórico, foi construído pelos mouros no século VIII ou IX D.C. Restaurado integralmente por D. Fernando II no século XIX, é fonte inesgotável de surpresas. O ossário. A cisterna subterrânea. A torre de vigia. A alcáçova. E as muralhas a rendilharem o horizonte. Erguido em dois cumes da Serra de Sintra – outrora conhecida como Monte da Lua - oferece vistas de cortar a respiração.

O meu olhar está pasmado. Mas o espanto não é proveniente do fabuloso cenário que se desdobra no horizonte. Deve-se, isso sim, a uma súbita visão - o manquinho do comboio Lisboa/Sintra caminha à minha frente. Sem quaisquer dificuldades. Senta-se numa esquina. Disfarçadamente, tira uns óculos escuros da carteira e cobre-se com uma manta gasta pelo tempo. A mesma voz rouca toldada pela fadiga entoa a já conhecida ladainha:

- «Por favor, ajudem o ceguinho. Estou sozinho no mundo, não tenho dinheiro para sobreviver».

Boquiaberta, olho uma, duas vezes. O manco virou ceguinho. Não há dúvida, é mesmo ele. A estatura pequena e franzina. O rosto enrugado e moreno. Tento verbalizar a minha indignação. Sem sucesso. Estou muda de acção e de palavras.

- «Tlim, tlim». O barulho metálico da moeda a cair no recipiente ecoa pelos jardins do castelo.

- «Muito obrigado. Deus vai recompensar a sua boa alma». Espantoso! Nem sequer se dá ao trabalho de alterar a forma de agradecimento. O mesmo sorriso cínico surge nos seus lábios. Triunfante, acaba de enganar o primeiro espírito generoso da tarde. Segundo, terceiro. São muitas as vítimas do malandro.

Malabarismos de chico-esperto à parte, a minha viagem prossegue até à Quinta da Regaleira. Um local místico, pleno de encanto. O castelo de sonho (três andares, em estilo manuelino). Os jardins luxuriantes. As inúmeras fontes. As grutas «assombradas». E os poços. O Poço Iniciático. Estendido 27 metros abaixo do solo, lembra uma torre ao contrário. Reza a história que o epíteto advém do facto de ter sido utilizado em rituais de iniciação à Maçonaria.

A tarde envelhece lentamente. É tempo de regressar ao centro histórico para saborear as afamadas queijadas. Inesquecíveis!

Sentada no comboio Sintra/Lisboa, penso em tudo aquilo que contemplei. Naquilo que não tive oportunidade de visitar (fica aqui a promessa do regresso). Um dia mágico num cenário de conto de fadas. Mas sem príncipes nem princesas. Apenas um malandro, um mau malandro. Manquinho de manhã. Ceguinho de tarde. E as suas vítimas, totalmente alheias ao facto de serem subornadas. Atenção, caro leitor, existem muitos parasitas à solta. Sagazes, chorões, manhosos, são especialistas na arte de nada fazer na vida. Quem será a próxima pessoa a ser enganada?

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