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Fogo que arde sem se ver

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A arte de Nelson Camacho é fruto das suas revoltas interiores. É uma reflexão que procura gerar a indignação, um não à indiferença. Ele é sobretudo um artista que utiliza novas ferramentas para expressar a sua visão sobre o mundo, uma sociedade sob a égide do fogo, o seu último grito de rebelião.

Na tua exposição “o meu fogo” porque decidistes misturar dois conceitos, o corpo humano e a imagem manipulada de um incêndio?

Nelson Camacho: Eu se calhar vou mais atrás. Obtenho as primeiras imagens de muito má qualidade quando estavam a decorrer os incêndios de 2010. Estava a passar de carro e filmei-os através de um telemóvel, por curiosidade para mostrar aos amigos na internet e nunca pensei que ia utilizar essa matéria-prima para dar azo a uma viagem que foi “o meu fogo”. Na realidade são situações que ocorrem na nossa vida e sentimos uma grande tristeza quando tais desastres se verificam na nossa terra, tanto descuido, tanto crime e abandono. Um ano depois ao mexer nos meus arquivos (passo tudo para o computador) revejo outra vez essas imagens e começo a pensar que deveria fazer um trabalho, não sabia se era para expor, ou se era para quem quer que fosse, não sabia também por onde começar, mas procurei fazer algo novo. Estava farto de executar trabalhos de vídeo arte, tenho outras características, outras possibilidades, que gostava de explorar. Como dou aulas, há 22 anos, na área de imagem e multimédia possuo uma panóplia de ferramentas que posso usar, nomeadamente a pintura digital, foi algo que me inspirou um grande interesse e então decidi enveredar por algo estático. Inicialmente a qualidade das imagens não era boa, mas não desisti, considero-me uma pessoa criativa. Então achei primeiramente que deveria encontrar um significado para este trabalho e depois avançar para algo manipulado digitalmente. Então o que comecei a fazer? Um poema a partir das imagens de vídeo feitas com o meu telemóvel. Essa escrita depois de depurada, com qualidade do meu ponto de vista, gerou um texto de que gostei e que deu sentido as imagens de vídeo. Aí tive a necessidade de construir “o meu fogo”, a minha viagem criativa, mas precisava outro tipo de matéria e nesse ponto surge o corpo humano. Era a personificação do fogo para depois avançar para a pintura digital. Idealizei uma sessão de vídeo com uma modelo, retirei os fotogramas que me interessavam e parti para o trabalho digital. Não é propriamente fotografia. É o meu grito de revolta.

Foi então um processo longo já que demorou cerca de um ano.

NC: O processo não seria longo caso tivesse trabalhado as imagens no início. Elas ficaram em aquivo, guardadas.

Então o que te levou a encetar o processo criativo?

NC: Não sei. A minha vida é muito complicada, sou uma pessoa muito ocupada, dou aulas e não há tempo para pensar. Estava tudo arquivado, mas não sabia quando o ia usar. As revoltas estão lá, também é possível guarda-las na gaveta. Só que um dia tu decides usar uma delas e mudar o mundo. Claro, que não é bem assim, mas surgiu num momento em que tive mais tempo e era um assunto que me incomodava. Em termos quantitativos demorei seis meses até ter tudo terminado, tendo em conta que resulta do meu tempo das horas vagas, deu-me um prazer enorme pegar nestas imagens e trabalha-las. Resumindo, comecei a trabalhar as imagens que captei dos incêndios através do telemóvel, fiz um vídeo com isso, depois escrevi um texto que contextualizava a minha revolta interior, os meus objectivos, as minhas técnicas e o próprio contexto da exposição, depois nasce a sessão de vídeo com o corpo humano que direcciona para o meu grito. Quis alertar através da mulher sobre os processos que decorriam, queria fantasiar com esse aspecto e acrescentar um certo erotismo, os pecados da sociedade e representa-los nos quadros, mas sempre com uma réstia de esperança, é um grito de alerta para que as pessoas acordem para os erros que estão a cometer. Os meus dezasseis quadros surgem desse elemento do fogo que esta presente. Esta exposição surge dos incêndios de 2010, em 2011 inicia-se o processo de itinerância, chegámos a 2012 e infelizmente o tema é mais actual do que nunca, porque no dia da apresentação no Centro Cívico do Estreito de Camara de Lobos, em simultâneo estava a ocorrer um incêndio nas encostas daquela localidade. Era uma incoerência. Estava a inaugurar uma mostra com muito gosto e prazer e ao mesmo tempo tudo ardia, mais uma vez, estávamos perante os descuidos na nossa sociedade e este ano foi pior ainda em termos de incêndios.

A pouco referiste que para esta exposição não pretendias fazer vídeo arte. Achas que já explorastes tudo o que podias desta vertente artística, é isso?

NC: Não se trata de achar que já explorei tudo, cada vez que faço vídeo arte aprendo comigo próprio, gosto de faze-los quando não são publicitários, realmente, como tudo na vida, nós cansámo-nos de trabalhar com esta matéria. Apetecia-me enveredar por outra faceta e foi só isso, sabia que tinha condições para avançar para um estudo e encetar por uma experiencia pessoal. Curiosamente, a essência da exposição é a manipulação bitmap, mas mesmo assim está presente uma animação que surge na escuridão, no meio de fumo, devido ao conceito que pretendia imprimir a mostra. Criei um pequeno segmento, onde surgiu uma voz a declamar o meu texto, em paralelo, uma bailarina através da sua expressão corporal que batia nas pessoas, incomodava-as, exigia espaço, depois tocava na parede e aparecia uma obra banhada pela luz, a maior de todas, de 3x2 metros, a décimo sexta, é montado em 3D e surge no final, quando as cortinas caem. Fiz isto porque pretendia personalizar a minha intervenção.

É a tua forma de linguagem, uma visão multidisciplinar.

NC: Sim, é a minha forma de expressão. Faço-o de diversas maneiras. Tudo aquilo custou a idealizar, porque foi necessário uma programação rigorosa. A ordem em que os quadros eram iluminados tinha uma cadência, um foco específico, não era fácil e não podia falhar. Todos tiveram mérito, mas a firma com quem trabalhei entendeu e concretizou a minha visão na perfeição.

O público no final entendeu a mensagem?

NC: De certa forma a mensagem principal passou. As pessoas aperceberam-se que todos temos culpa, que temos de fazer mais, claro que depois assumem o outro lado, criticam o que veem, tentam compreender a outra faceta da mensagem que foi o porque seguir a pintura digital, se gostam ou não, o que representavam determinados quadros mais abstractos, embora se apercebam do elemento feminino, acabam por ser passíveis de diferentes leituras. No final estavam satisfeitas porque houve um todo, uma encenação, onde se mostrava um quadro de cada vez e vou ser sincero, eu creio que as pessoas entenderam. Agora, se mudaram de atitude, desconfio de não, as pessoas continuam distraídas, não estou a dizer que os meus convidados tivessem culpa, mas a infeliz realidade é que os incêndios vão continuar a acontecer. A sociedade só reage quando a desgraça a atinge e fico triste porque acho que podemos aprender observando, mas há pessoas que acham que não.

Vamos mudar de assunto. Tens por hábito organizar noites culturais, recentemente esteve envolvido num evento em que vários artistas criavam em simultâneo. Porquê sentes essa necessidade?

NC: Primeiro, amo todas as artes. Sempre fui apreciador, quando viajava, das diferentes formas de expressão. Esse é o ponto de partida. Depois estou próximo de várias pessoas ligadas as artes. Em terceiro lugar, sempre foi muito apologistas de que as pessoas pudessem assistir in loco o decorrer do processo criativo, de uma abertura para esse tipo de informação e apesar de compreender que cada artista necessita do seu momento de intimidade para produzir arte, estar rodeado de uma certa privacidade, também acho fantástico conviver com essa zona de conforto de uma forma aberta. Acho salutar que os artistas que assim queiram manifestar-se, nesse ruído, que envolve as pessoas que passam e a música ambiente. É importante também mostrar o talento nacional, muitos desses jovens artistas necessitam desse tipo de exposição, eles tornam o evento rico, com essa cor e diversidade.

É necessário este tipo de eventos com forma de sensibilizar o público para a arte?

NC: Também. Sem dúvida é necessário valorizar, mas como se o pode fazer se as pessoas não a vem? Muitas vezes este tipo de discussões surgem entre amigos, até que ponto a arte é feita para determinado individuo? Desta forma contribuímos para que a pessoa veja in loco.

Há quem considere que não se trata de um acontecimento cultural, mas sim de entretenimento.

NC: Eu respeito quem pensa dessa forma. Mas, é um evento cultural, se não é, pergunto, porquê? Para assumir essa designação tem de ser pago? Os artistas têm de vir de fora? Tem de haver um curriculum de galeria? Porque não é um evento cultural se todos eles trazem algo de novo? E mais, sabem expressa-lo. Sempre tive um bom feedback do público. Os trabalhos têm boa qualidade, uns mais do que outros? Se calhar, mas essa leitura também interessa. Venham analisar, venham criticar. Todos os eventos contribuem para mobilizar a arte na Madeira, mas haverá sempre quem critique.

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