Fala-me um pouco de cenas de vício/ cenas de sacríficio.
ES: Foi um tema em que andei a trabalhar durante algum tempo, tem a ver com o papel da mulher em qualquer tipo de sociedade, apesar de hoje em dia não se falar muito disso, porque respondemos a esse tipo de questões com gráficos e estatísticas, na verdade a mulher tem um papel importante enquanto força trabalhadora, em termos de participação cívica na sociedade e quando se fala de exercer poder a sua influência ainda é muito limitada. Demograficamente falando somos mais ou menos 50% de homens e 50% de mulheres o mesmo não se verifica nas cúpulas onde são tomadas as decisões, então esta série é uma forma de ilustrar esse desequilíbrio que existe. Também faço um paralelismo com a antiguidade clássica, porque era exactamente o mesmo há 3 mil anos, não que se justica-se na época, mas actualmente não é aceitável de forma alguma. É inacreditável que em pleno século XXI haja mulheres, em alguns países, que recebam ainda um terço de ordenado mesmo fazendo o mesmo trabalho que os homens, que uma mulher que decida ter filhos e queira continuar a trabalhar é posta de parte e apenas tem acesso aos seus direitos adquiridos, porque o patronado tem de cumprir a lei e se isso é numa sociedade que se diz moderna, não faz sentido. Escolhi o tema “scenes of vices/ scenes of sacrifices”, porque tem a ver com o mito da medusa contado num vídeo. Quando os romanos decidiram adoptar, ou melhor absorver a cultura grega, muitos destes mitos foram reescritos por poetas romanos, o da medusa em particular, é importante por este paralelismo de que falei. Ovídio fala de uma sacerdotisa de Atena, virgem, muito bonita e de como tanto homens como mulheres sentiam-se atraídos pela sua beleza e apaixonavam-se por ela, em particular o deus Poseidon, que a confronta e viola no templo. Este acontecimento precipita uma série de eventos fatais para a jovem, porque ela em vez de ser defendida, já que foi agredida e violentada, a reação da deusa que a devia de proteger é tudo menos protectora, acusa-a de sedução, de manipulação e castiga-a, condenando-a a viver para toda a eternidade, completamente afastada da humanidade, tira-lhe a beleza toda que tinha, dá-lhe uma cabeça coberta de cobras, uma cara de ferro e como castigo máximo confere-lhe um olhar que transforma tudo e todos em pedra pura, desde que olhe directamente para ela. Este é um paralelismo com a realidade, já que muitas vezes assistimos nas notícias mulheres a serem apedrejadas nos países de crença islámica, ou em nações como a Índia jovens são violadas em lugares públicos e não acontece nada aos agressores, ou mesmo se uma rapariga engravida com 14, 15 anos de idade os pais expulsam-nas de casa, porque é uma vergonha, devido aos dogmas religiosos. É algo que me fala muito perto do coração e enquanto artista plástico tenho também de ter alguma responsabilidade e não é só tentar uma composição agradável. Uma das responsabilidades dos artistas, é por exemplo, numa grande obra mostrar esses grandes momentos. Temos o caso do Picasso que pintou em 1936, o Guernica, que foi precisamente uma tela para ilustrar a barbaridade da guerra civil espanhola, quando o general Emílio Mola pede aos alemães para bombardear a cidade e acho que este é um tipo de demonstração estética que se perdeu. Hoje em dia os artistas estão mais preocupados com o “eu”, o individual, somos tão mais do que isso, porque uma coisa não implica a outra. Faz parte da nossa responsabilidade de agentes das artes visuais fazer coisas que faça as pessoas reflectir e portanto, é também necessário, não podemos continuar a viver em redomas.
E nesta sequência escolheste as figuras, as mulheres, consoante o contexto do projecto, ou houve outro motivo para essa escolha?
ES: Eu quando trabalho com as minhas modelos informo-as sobre tudo, porque no fundo estou a trabalhar com uma pessoa que vai fazer uma actuação, o processo é um pouco mais intenso, do que apenas uma posição. Às vezes dou-lhes textos para lerem, terem disponível toda a informação é importante, porque tudo conta, a contração muscular, a expressão facial, todos esses detalhes são captados pela pintura, sem termos a noção que o fazemos olhámos, mas há uma sensação, uma energia que sai dali. Todo o processo criativo em termos de pose é feito dessa maneira, por norma tento trabalhar com outros colegas pintores, escolhos os artistas com quem partilho mais ou menos a mesma linguagem é mais rápido os resultados.
Quanto tempo demoras para executar uma sequência?
EA: Depende, eu demora seis meses para escrever sobre o tema, fazer pesquisa, tomar notas e depois tenho mais meio ano para preprarar a série, para pintar, mas o acontece com frequência é que tenho mais do que uma sequência em simultâneo, porque por vezes quando estas imerso em apenas um projecto, só o vês à frente e reflectes sobre isso 24 horas por dia, chegas ao fim de um certo tempo que o desgaste é tanto e ficas esgotado, não consegues desenvolver mais, porque estas tão saturado e o processo criativo não acontece. Então, sentes a necessidade de ter outros objectivos em paralelo, fotografia, design, desde que te estimule de forma criativa, vai ajudar-te a continuar com esse trabalho que estas a desenvolver.
E os modelos estão in loco? Ou tiras fotográfias primeiro?
ES: Sim, eu tenho que tirar fotografias, porque é impossível e extremamente caro teres um modelo à tua disposição 6 a 8 horas por dia, então, o que eu faço é esboços a partir do modelo vivo, fotográfo em várias posições e ângulos e trabalho com posições que eu acho mais interessantes em esboço, volto aos esboços finais, fotografo de novo e faço o desenho a partir da fotográfia com uma diferença...O que noto em muitos artistas é que projectam a fotografia para a tela e copiam-na. Eu não faço isso, eu uso a fotográfia como um suporte, uma ferramenta, o meu desenho é medido, académico, nada é copiado, porque ao fazê-lo eu acho que perdes um pouco a poesia da mão, é como a caligráfia, tu tens a tua própria, se alguém a quiser imitar tem de treinar muito e mesmo assim não passa a ser deles. Meu desenho é a minha escrita, onde as pessoas que olham para a obra a podem reconhecer e eu acho que é algo que se esta a perder cada vez mais entre os artistas plásticos e pintores que trabalham o figurativo, é um metódo, mas ao meu ver, é batota. Eu sou mais do estilo do cavalete e da tinta a correr, ou carvão a cobrir-me a mão olhando para a figura que esta à tua frente, sou tradicionalista nesse sentido.
O que há da ilha em ti como artista?
ES: Eu sou do Porto Santo e já estive na ilha da Madeira, eu acho que o que estas ilhas me deram foi precisamente esta atitude que tenho como artista plástico, esta insatisfação e ainda bem. No entanto, não deixam de ser terras muito pequenas, com mentalidades complicadas, é difícil ter um projecto, ou uma alternativa mais arrojada, porque bem ou mal era complexo conseguir sair-se de um certo módulo e explorar outras visões ousadas e essa constante insatisfação é que me fez desenvolver o meu conceito e comportamento, enquanto artista plástico. Tenho pena é que a Madeira possui excelentes artistas, que tiveram de ficar na ilha, tiveram que procurar carreiras alternativas não puderam seguir as artes e são pessoas válidas, tendo em conta o panorama nacional e internacional, considero que deviam ter uma voz, ser vistas e configuradas.
E foi isso que te levou à Londres?
ES: O que me trouxe a esta cidade foi uma série de circunstâncias, mas também. Londres num dia pode ser a melhor cidade do mundo, pode ser espectácular, no outro é madrastra, num dia é fria e indiferente e a seguir senteste como se estivesses em casa. É uma cidade em mudança constante e eu necessito deste constante conflito, perturbação para criar, porque quando estou sereno e calmo, são os piores períodos de criatividade que tenho. Começo a pensar em paisagens e depois tenho que meter-me de novo na confusão para poder pensar (risos). Londres é fabulosa em termos de criatividade, de inspiração.
E aos artistas encorajam-nos mesmo os estrangeiros?
ES: Sim, sim. Nesta cidade tu tens um lado políticamente correcto que toda a gente concorda e muito bem, mas tem também o seu lado negro. Em Londres tu tens um enorme apoio às artes, tens o National Gallery, um dos maiores museus ao nível mundial, onde podes ver as telas dos grandes mestres de pintura, gratuitamente, desde obras do século XIII até practicamente ao XX, nesse sentido é uma cidade que vibra de forma maravilhosa. Agora, o mercado de arte é uma ratoeira, é complicado, passa por teres conhecimentos, tens de conviver e é do tipo de coisas para as quais não só não tenho jeito, nem paciência. Eu sou um artista muito recluso, pinto, raramente vou à inaugurações, ou eventos, quando apareço já esta tudo a terminar, ou a meio do mês vou ver a exposição que me interessa. Não gosto de aparecer, ainda sou muito arte pela arte e tenho pena que as coisas para funcionarem tenham de passar pelo social. Há essa ambiguidade e paradigma ao qual tens de te habituar e sei que vou resistir e vou continuar assim.
Agora sei que vais apresentar, inaugurar uma exposição em Alcanena? Num museu? Galeria?
ES: Sim, dia 5 de Dezembro, mas trata-se de um “art stage João Carvalho”, ele é um industrial e mecenas, já que suporta as artes, principalmente a figurativa, que é um estilo que não é muito apoiado em Portugal. As galerias preferem e apostam muito mais na arte conceptual e abstracta. A pintura figurativa tem sido posta de parte há já algum tempo, ele tem vindo a apostar em artistas contemporâneos portugueses, tem vindo a mostrá-los e acho essa iniciativa de louvar. Foi convidado há uns meses atrás, fiz a apresentação da série de vício e sacrifício, foi aprovado e vamos expô-la neste espaço, que futuramente será uma galeria de arte, actualmente esta a fazer mostras pontuais com o objectivo de aprender com a sua própria actividade.
Já aqui descortinaste algumas das tuas opiniões sobre as artes em Portugal, mas como vês o panorama geral nacional para artistas como tu e como outros?
ES: É complicado, porque estou um pouco afastado. Mas, pelo que consigo acompanhar pelos meios sociais e algumas publicações também, acho que temos de conseguir ter uma maior voz ao nível europeu, porque temos artistas tão bons, como exemplo, o Nuno Nunes Ferreira e a Dalila Gonçalves, entre os artistas madeirenses, o Paulo Ladeira e tenho pena que não se vejam mais esses trabalhos. Dos que estão nas trincheiras para conseguir mostrar o seu trabalho, acho que apesar de tudo não estámos mal, podíamos ter mais validação, quando temos um Estado que não apoia, ou incentiva as artes, ou a cultura em geral, o trabalho é muito mais complicado. Contudo, é nestes momento difícies quando te fecham as portas é que podes ser o verdadeiro artista, porque tens a liberdade de mostrar do que és capaz. Na adversidade é que o indíviduo tem de mostrar tudo o que tem e os artistas portugueses fazem isso muito bem.
Para além desta exposição, já estas a trabalhar numa outra série?
ES: Sim, já. Na verdade esta série do vício e do sacríficio foi terminada em 2014, eu entretanto, pintei “volta para tua terra” e neste momento estou a trabalhar um conjunto de triptícos, retrato também, mas é uma experiência, estou a apostar em novos formatos de pele, explorar novas técnicas e a ver alguns resultados antes de utilizá-los numa série de pinturas de forma séria. Tenho um projecto intitulado, “medo de Deus, medo do inferno” que tem muito a ver com a nossa cultura, com os nossos medos, tradições, heranças e crenças. Tem a ver com facto de lidarmos com certas regras, leis, restrições e pressões. Este projecto desenvolve-se através de uma figura um pouco esquizofrénica, segundo o exterior segue as convenções sociais, mas por dentro, tem enormes conflitos e vai imaginá-los. Ainda estou a escrever sobre isto, o que a série representa e como posso enriquecer essa linguagem.
Estás a pensar em triptícos, vais retratar famílias, diferentes retratos de um mesmo grupo?
ES: Técnicamente sim, representam-me a mim (risos). São auto-retratos, mas porquê? Porque é o que tenho mais à mão, é mais uma desculpa para estudar pintura, para desenvolver forma, para estudar a pincelada, a consistência das tintas e eu estou a chegar a um ponto em que o detalhe é tão importante como a obra final. Cada linha, cada pincelada carrega a mesma carga emocional e estética que a pintura no seu todo. Os impressionistas tentaram fazer isso desde sempre, valorizar a pintura não só pela sua composição, como pela matéria, porque tudo o que vês, implica uma série de leituras e observações, que podem ser óbvias ou subtis, isso requer tanto da obra, como do autor. Nos intervalos das grandes séries que tem de oito a 12 telas, eu faço dois ou três retratos, eu desenho todos os dias para os poder desenvolver posteriormente. Existe a pressão da evolução, não é só o querermos melhorar, mas evoluir no resto, é uma corrida muito pessoal, individual e solitária.