Um olhar sobre o mundo Português

 

                                                                           

h facebook h twitter h pinterest

Os dualistas

Escrito por 

O sagrado e o profano é o elo de ligação entre Daniel Melim e Pedro Kogen, na próxima exposição da Galeria do Prazeres, na Calheta. O que une estes dois artistas? São jovens talentosos, que não receiam experimentar, nem expressar essa pulsão de múltiplas formas. O que os distingue? A forma única como encaram tudo o que os rodeia. Daniel Melim possui uma obra quase naturalista, que aborda a natureza e o ser humano no seu contexto social. É um artista mais carnal, mais físico e que transmite no seu traço as emoções à flor da pele. Pedro Kogen é o reverso da moeda, é um artista movido pela lógica, pela reflexão, que espelha uma obra tridimensional. É menos impulsivo, mais neural, mais intimo e isso nota-se à distância literalmente. Uma dualidade a não perder no próximo dia 5 de Outubro.

Qual é a ideia por detrás desta exposição?

Daniel Melim: É um encontro entre o percurso de ambos. São duas visões distintas. Eu trabalho mais na área das imagens, em termos de pintura e desenho e o Pedro Rodrigues versa mais uma vertente tridimensional, sendo o foco comum, desenhar nos Prazeres. Desenhámos a natureza, assim como as nossas preocupações, o que nos interessa aos dois, essa ideia do sagrado e do profano, de uma forma simples e expandida, não no sentido religioso do termo. Esse será o fio condutor da exposição embora, não tenhamos uma ideia definida à partida, porque viemos cá fazer uma residência artística com um espirito muito aberto e a partir daí víamos o que surgia.

O teu trabalho reflecte a natureza e a sua envolvência, quer na pintura, quer no desenho. É neste ambiente que te sentes mais á vontade?

DM: Eu trabalho a partir de modelos tridimensionais, neste caso a natureza e depois refaço as imagens no atelier, continuo a trabalhá-las depois com a minha imaginação, se quiseres, através das minhas referências pessoais e com muito do universo da banda desenhada. A natureza quer de facto aqui, neste ambiente mais de jardim protegido do exterior, quer nas levadas, quer nas praias não-vigiadas onde estive trabalhar, toca-me, são locais onde sinto directamente essas tais forças naturais a convergirem, a equilibraram-se, a desequilibrarem-se. Sinto a vida a vibrar bastante nesses locais.

O teu universo artístico reflecte um pouco a corrente dos impressionistas. A luz e as sombras são dois aspectos que te preocupam?

DM: Sim, no sentido dessa proximidade ao exterior e do atelier. Não como ser isolado, supostamente genial, criando num cubículo fechado, mas sim, no sentido do naturalismo, depois no impressionismo do século XIX. Trabalhar as impressões do exterior, da tal natureza que não esta protegida, nesse sentido sim. A luz e a sombra, as texturas, a fluidez e a rigidez, depois passa para o trabalho. A minha interpretação tem sempre esses dois níveis, o trabalhar na rua e no interior que é mais sintético, mais apurado em termos de imagem. Até posso desenvolver essa vertente de apuramento da rua, mas há sempre o trabalhar dentro.

As praias não-vigiadas o que te atraiu nesta temática?

DM: Porque, tem essa ligação à natureza menos mediada pelas pessoas, ou seja, não tem ninguém a vigiar, eu sou responsável pelos meus passos, eu gosto dessa ideia. A responsabilidade hoje em dia no contexto madeirense, o não ser vigiado, é algo que me interessa alimentar e experimentar.

Porquê toda esta sequência de desenhos são a preto e branco parece ter sido um trabalho mais aprofundado do que os outros desenhos a cores?

DM: Porque levou mais tempo, são imagens feitas à mão. Reflectem a dimensão do tempo, que nada tem a ver com a inclusão de cor, tem a ver com o tipo de minucia que a pessoa se auto exige, neste caso é meticulosa em relação as texturas. Há uma atenção especial com as rugosidades e na forma como a história desse chuveiro, desse bote e desse rochedo, é contada. É um único elemento preto sobre o branco. Como tenho a intenção de narrar com muito rigor cada rugosidade isso leva a uma espécie de extensão no tempo, porque também o poderia ter feito em quatro pinceladas e escolhi não faze-lo. É monocromático, mas sente-se esse trabalho aprofundado.

O facto de seres ilhéu, de te isolares para desenhar, de seres uma espécie de ilha em ti próprio, tem alguma influência no teu trabalho como artista?

DM: Acho que me levou muito tempo a perceber a influência do facto de ter crescido na Madeira e embora esteja a residir há onze anos em Lisboa, só nos últimos sete anos me apercebi da influência específica de crescer aqui e não em outro sítio. O retorno assume as riquezas da ilha e essa dimensão de que falas, não sei se é do momento, mas é da vontade de sentir com muito rigor a minha presença individual no mundo. Quanto uma pessoa se debruça sobre uma pedra, ou mesmo sobre um só elemento, tem essa dimensão de ilha. Se reparares na minha pintura há sempre um componente isolado, por mais turbulento e dinâmico que seja. Essa é a ideia de ilha, mas sobretudo, a relevância dessa vibração orgânica das rochas, nas escarpas, nas escadas que as pessoas escavam na montanha, nos poios improvisados, nesta primavera quase constante em que tudo se regenera e penso que essa dimensão está presente no meu traço. Por outro lado, eu desenho na rua, ofereço os desenhos a pessoas que estão em recuperação, isto é o resultado de um projecto que tenho com uma amiga psicóloga. Também há o trabalho que fiz na Ribeira Seca, com o Rigo, para uma comunidade que tem uma ideia de liberdade muito diferente. Tem a ver com a falta de sentido comunitário numa vertente mais ampla. A ilha tem esse isolamento excessivo das pessoas e que aí falo também de mim. O meu trabalho também vai nesse sentido de abrir-me para a comunidade, de ser de uma ilha, aqui existe a necessidade de me libertar mais, de interagir com os outros, de alimentar a liberdade e o sentido de partilha democrático.

Uma das preocupações patente nas tuas obras é a luz, a sombra e a geometria.

Pedro Kogen: É mais o espaço e tenho também uma preocupação com o suporte, a forma como os desenhos se suportam, os enquadramentos e como os materiais jogam uns com os outros. Depois tenho um interesse paralelo que é a teoria física.

Como é que trabalha a física, em termos artísticos?

PK: O trabalho dos ímanes (da série “en attendant”) é mais uma dessas pesquisas. Todos estes aspectos misturam-se e as vezes há uns que focam mais o que estavas a dizer, a luz e sombra. Antes de vir para aqui, em Paris, tive uma encomenda de um quadro para um privado, a minha preocupação depois de fazer o desenho é de o integrar na moldura. Para o efeito fiz um suporte em resina com uma placa magnética, então a questão é como é que os dois planos se colavam? Aí entra o tudo, o lado magnético, a luz e a sombra. Estou a tentar unir todos esses pontos e sintetiza-los.

Os materiais interessam-te?

PK: Sim, tem ver com arquitectura, embora eu me tente afastar dessa vertente. Uma pessoa tem uma profissão e invariavelmente traz toda essa bagagem, embora não queira afirmar nada de arquitectónico, Tenho sim, um olhar no espaço e nas proporções, que advém do meu treino. Os materiais interessam-me. Para a exposição dos Prazeres, fui buscar madeira queimada e estamos a ver como vamos usa-la na exibição. O material como ele próprio e inserido noutras vertentes.

Trabalhas sobre o tridimensional?

PK: Sim, tens razão. Eu quando penso num desenho, não o imagino em duas dimensões, eu penso-o sempre em termos de um contexto, de um meio ambiente. Tenho uma espécie de obsessão. Mesmo no quadro que idealizei para o privado, eu sei onde o norte, o sul, o este, leste e o oeste, onde é que a luz vai entrar no quarto.

Tu imaginas tudo antes?

PK: Sim, isso conta tudo. Se é uma luz mais rasante, se é mais ténue. Conta tudo no resultado final.

E esse resultado é tudo o que imaginaste ou há surpresas?

PK: Não posso afirmar que posso dominar tudo, ninguém pode ter essa certeza. Eu não sou como outros artistas que deixa uma parte ao acaso, faço o contrário. Não deixa contudo, de ser algo bom, por exemplo, neste trabalho com o Daniel, nesta residência artística, testar esse acaso, pelo tipo de encontro, pelo sítio. Estou a tentar deixar-me influenciar por esse aspecto, porque por norma, sou mais perfeccionista.

Porque deixaste a arquitectura? Porque sentistes que já tinhas explorado tudo nessa área, ou, porque sentiste apenas o apelo das artes?

PK: Eu sou como todos os pintores, comecei a desenhar em criança. Decidi seguir arquitectura mais pela família. Eu passei sete anos num atelier muito bom, participei em projectos fantásticos que nunca mais vou ter na vida, o nível era muito bom e tinha uma qualidade de vida muito boa. Não sei se foi por causa da crise dos 30 anos, decidi mudar. Eu estou agora a desenvolver uma série de projectos e não me considero nem arquitecto, nem artista. Desde mobiliário para uma revista, conceitos para as cidades do futuro, estou em simultâneo a pintar para galerias e vou fazer ainda instalações para espaços públicos. No fundo, não posso colocar-me numa redoma e numa categoria. Eu faço os projectos que me propõem.

Achas que viver em Paris ajudou a tua nova carreira, porque se fosse em Portugal seria mais difícil?

PK: Não sei se seria mais difícil. Não dá para responder a isso. Por uma série de causas e efeitos estou a residir nessa cidade, estou lá há oito anos e conheço muita gente lá. Ajuda porque há muita arte e o nível é muito bom. É uma cidade que não para.

Fala-me um pouco do trabalho que estas a desenvolver para esta exposição.

PK: É o sagrado e profano. Neste âmbito, os desenhos, pinturas, que vou propor versam sobre uma frase atribuída, creio, aos chineses, que afirmam que há três momentos sagrados na vida, o nascimento, o casamento e a morte. Então, fiz um desenho por cada uma dessas etapas. Nas conversas que tive com o Daniel sempre tentei criar um elo com a ilha, eu não sou de cá, ele é e esse contraste esclarecia alguma coisa. Tentei usar a minha distância como mais uma camada para o trabalho. Então esses momentos estão relacionados com um amigo que se casou cá, são fotos que trabalhei, comecei pelo digital e vou acabar no desenho à mão. De perto não se vê nada, só os podes apreciar de longe. É o ser íntimo à distância. Gosto de ser íntimo, mas de longe. Depois estou a pintar uma cascata, porque fascinam-me as paisagens e as nevoas da Madeira. Vou-lhe chamar hierofania vertical, é um termo complicado, que é usado pelo Mirlea Eliade e quer dizer simplesmente manifestação do sagrado.

1 comentário

Deixe um comentário

Certifique-se que coloca as informações (*) requerido onde indicado. Código HTML não é permitido.

FaLang translation system by Faboba

Eventos