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A contista de vera cruz

Escrito por 

Marilene Ferraz desenvolve a sua actividade educativa no Centro Cultural Brasil-Cabo Verde, uma instituição que promove a cultura brasileira, através do livros, filmes e do ensino do português do Brasil, no arquipelágo africano. É também autora de literatura infantil com temática cabo-verdiana e contadora de histórias.

Explica-me como é que uma brasileira vai para Cabo Verde dar aulas?
Marilene Ferraz: O que me levou à Cabo Verde foi o coração. Havia um cabo-verdiano no meu curso de jornalismo, casámos e fomos para lá. Estou há 27 anos neste país, a minha formação é jornalismo, mas a minha primeira vocação é o magistério primário. A educação para mim é algo muito importante, em Cabo Verde descobri pelas leituras de Almícar Cabral que estavam muito mais avançados em termos de pensamentos que no Brasil, que só pensa assim agora com o governo Lula, que a educação é o meio mais rápido de ascenção social. Neste país africano isso é uma realidade do quotidiano e parece mesmo uma mágica, é possível ser muito pobre e passados doze anos ser uma pessoa que tem um trabalho, ou estar fazendo um curso superior e estar bem na vida. Eu trabalhei os 10 anos iniciais como jornalista na área do social e da educação, depois passei mais dez dando aulas no segundo maior liceu do país, não em português, mas numa disciplina que pode ser chamada de educação para a cidadania. Foi através dessa experiência do ensino que conheci o país, através dos seus jovens, que são bondosos, respeitadores, trabalhadores e de uma educação que lembra os anos 50, com esse naif da alma. Mais tarde foi trabalhar na direcção do Centro Cultural Brasil-Cabo Verde, que é uma instituição do governo brasileiro, onde sou funcionária local cá. Na altura quando comecei não sabia como trabalhar com cultura, porque não era a minha área e tínhamos poucos recursos, então decidimos investir na educação e foi o que fez a diferença. Hoje, o português esta lá, somos o centro mais actuante, o “Itamaraty” me manda livros e filmes que tem um público cabo-verdiano que os consome, todas as quintas-feiras temos cinema brasileiro, há seis anos sem parar, claro, quando há comédia aparece mais gente, se o filme tem actores da rede globo tenho sala cheia e também levámos os filmes até escolas, ou instituições locais. Ensinámos também português nas cadeias e aos emigrantes, guinenses que nunca aprenderam a língua portuguesa no seu país, para a cabeça do lusofóno aprender português do Brasil é menos arriscado, eles podem errar, então tem menos complexo em falar brasileiro, o português de Portugal gera um compromisso tão sério que eles tem medo.

Mas, apostam sobretudo na infância?
MF: Você quer um consumidor de cultura adulto, mas nunca pensou que tinha de ser formado desde pequeno. Nós estámos fazendo isso, vamos as escolas, temos um projecto chamado mala literária, que abre como uma estante e passámos uma manhã numa escola, primeiro com a contação de história e depois disponibilizámos o livro. É uma loucura, mesmo os meninos que não sabem ler vêem as imagens depois trocam os livros e tem sido uma experiência muito boa. Também recebemos escolas no centro cultural, já virou o nosso cartão de visita, a contação de história e a oficina brincante, que é brincar cantando uma música que também conta um conto. Depois também temos capacitado monitores de jardim de infância, porque em Cabo Verde ainda existem poucos profissionais capazes de trabalhar com criança, então temos apostado nessa formação. Este ano vamos começar dois projectos pilotos, um com o ensino básico e outro com jardim de infância, estámos a trabalhar em três instituições públicas que estão na periféria, onde a contação de história não chega. Vamos iniciar um projecto de escrita criativa com o ensino básico, é algo que temos feito há cinco anos, uma oficina para crianças entre os 6 aos 12 anos e que tem tido um resultado maravilhoso, porque a gente publica internamente “o meu primeiro livro”. A última actividade de uma criança é produzir uma poesia delas, que a gente trabalha com o “limericks”, que é um processo que nasceu na Grã-Bretanha e que no Brasil foi muito trabalhado pela Tatiana Belinky que é uma russa que cresceu no nosso país. Os meninos aprendem, através do limeriques, como isso deu muito resultado a gente tem quatro edições de livros infantis, os meninos levam para a casa ou para escola como forma de melhorar a relação dos alunos cabo-verdianos com a leitura da língua portuguesa e nós ficámos com uma edição.

É bom que foques essa questão, porque em termos educativos, as crianças cabo-verdianas aprendem crioulo em casa, mas quando vão para a escola são alfabetizadas na língua portuguesa e isso cria um fosso em termos de aprendizagem, o que provoca uma taxa negativa de reprovação em termos dos resultados dos exames à português.
MF: Sim. O crioulo é a língua materna que eles ouvem desde que estão na barriga da mães deles, eles constroem toda a sua vida até os seis anos nessa linguagem. Quando chegam na escola primária são alfabetizados no português que muitas crianças nem ouviram falar, sobretudo, as que vivem nas áreas rurais. Eles apenas ouvem o que vêem em novelas brasileiras, inclusivé, o que a gente tem notado é que a criança e o professor não fala bem português, fala em brasileiro, porque eles acham que não é uma língua portuguesa e falando com alunos meus que ajudo para a prova de capacitação de língua portuguesa para se poderem candidatar ao ensino superior no Brasil, descobri que até as meninas ao brincar com as barbies constroem narrativas em brasileiro e eu perguntei porquê? Não é porque esta faltando literatura e contação de história em português deles, mas é porque aprendem narração de história, através de novela brasileira. Até dá para fazer um estudo, porquê é que as crianças lusofónas, não brasileiras, brincam de boneca em brasileiro?

Focaste também a questão dos livros, tem a actividade do bau da leitura, são em crioulo ou português?
MF: São em português, porque não há livros infantis em crioulo, ainda não. Até não havia livros infantis com temática cabo-verdiana até o ano 2000.

Mas, também salientaste que existem poucos livros em português e que devia haver uma maior troca de literatura entre os países lusfónos.
MF: Sim, é um problema de logística.

O mercado literário brasileiro funciona internamente, mas não tem essa ideia de exportação.
MF: Não há, eu não conheço esse trabalho de mercado com outros países, porque internamente ele se basta, são 200 milhões de pessoas. Nas escolas brasileiras, nos últimos 10 anos, o mercado de livros escolares é renovado pelo menos de 3 em 3 anos, nesse período de tempo produzem-se 60 milhões de livros, apenas para uma matéria, no final tem pelo menos 300 milhões livros circulando, então esse é o número de quase todo o mercado da lusofonia, por isso, o Brasil se basta internamente. O país foi sempre fechado em si mesmo, por ser muito grande, mas com a melhoria económica o brasileiro viajou e começou a consumir mundo, para além de Miami. Outro dia me surpreendi com brasileiros que foram à Cabo-Verde conhecer África, não chegaram ainda ao continente, estiveram na ilhas que falam a mesma língua, é preciso conhecer os outros países para o mercado brasileiro também começar a consumir.

Foi também por isso que decidiste escrever contos infantis, devido a essa carência de literatura infantil em Cabo-Verde?
MF: A literatura infantil com temática cabo-verdiana, com criança negra de nariz chato, porque uma vez eu me choquei com uma situação e foi isso que me levou a escrever, eu não me considero escritora o que é estranho, decidi escrever porque havia um livro que as crianças usavam era a história de uma casa de banho bonita e um menino branco e eu pensei como é que pode pôr um livro desse para crianças que nem tem banheiro em casa? Eu decidi escrever literatura com a cara de Cabo-Verde, porque acho que a pessoa quando se reconhece na história, mesmo que seja fantasia fica mais fácil e ela gosta mais. Alguns deles foram-me encomendados, pediam-me para fazer história sobre uma temática, por exemplo, um banco que queria ensinar as crianças a poupar e eu escrevi uma história sobre isso, aquilo passa “en passant”, esta lá, mas não é o conceito principal. Quando você produz, imprime o livro e vende, o que ganhou não dá para pagar o que investiu, então, por encomenda eles distribuem gratuíto e faca mais fácil, o último trabalho que fiz foi para a Presidência da República, era para as crianças entenderem o que era a constituição.

Apesar de toda a fantasia, a vida em Cabo-Verde é muito dura.
MF: Sim, é muito real, apesar de as crianças terem os contos tradicionais. Mas, é preciso fantasiar, não só para as crianças de Cabo-Verde, permite que elas criem um escudo proctetor para lidarem com os grandes traumas, porque isso elas vão ter sempre ter na vida. A fantasia é boa, porque ajuda a criança a crescer e entrar na realidade sem grandes dores.

Então quais são os novos desafios para estas pequenas nações africanas? Tendo em conta a tua experiência na área da educação com mais de dez anos.
MF: Eu acho que o grande desafio é educar as crianças de uma forma mais afectuosa, sem gadgets. Hoje os pais acham mesmo em Cabo-Verde que os smartphones, os tablets são importantes para educar, mas eu acho que as crianças precisam é que se contem histórias, que estejam por perto. Ainda hoje você pede a uma criança cabo-verdiana para me contar história, ela não sabe, conta partes, conta uma piada que é coisa de adulto, porquê? Porque na infância deles ninguém o fez e eu acho que isso não acontece só com a criança cabo-verdiana, porque esta globalizado. O país é um arquipelágo onde passa o mundo e por isso tem acesso a tudo, mas essa coisa básica de pele, de contato olho no olho, também esta acabando, porque os pais tem mais capacidade de consumo e aquela coisa da avó que contava história desapareceu. Até há uma escola local que retoma isso, mas como actividade curricular, deixou de ser natural, mais ainda bem que alguém se lembrou de fazer isso. Cabo-Verde tem dois ritmos tem muita coisa ainda por fazer e outras em que já atingiu o mundo moderno, o jovem cabo-verdiano tem mais acesso a todo tipo de tecnologia, do que um jovem brasileiro. Você tem praças tecnológicas com acesso à internet gratuitamente, toda a gente esta conectada, mas não o esta realmente.

Achas que os livros vão desaparecer em termos físicos?
MF: Não de jeito nenhum. Já se fala disso há vinte anos quando as novas tecnologias começaram, se fosse para desaparecer já tinha desaparecido, porque o prazer de uma criança tocar o livro e ver o desenho ainda é muito grande. A gente é que não quer acreditar nisso, porque é um lobby das empresas tecnológicas, mas nada substitui o prazer de tocar, de folhear, a forma de olhar e relacionar não é a mesma que num tablet. O livro é algo muito bom e a indústria livreira esta acompanhando, porque os livros infantis estão cada vez mais bonitos, com desenhos em 3 dimensões, figuras com cheiro e com toque diferenciado e estão acompanhando de tal forma que a grande moda é livro de colorir para adulto.

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