
“As memórias das histórias das gentes que fazem a história” surgiu de uma conversa entre Graça Alves e Cláudia Faria, ambas investigadoras no Centro de Estudos da História do Atlântico (CEHA), sobre as lacunas em termos registos da vida privada, da visão das pessoas anónimas sobre determinados momentos desses eventos marcantes da história da ilha e a sua própria existência. Um projecto de recolha que dá o protagonismo ao cidadão comum e ao seu papel directo ou indirecto no desenvolvimento da Madeira e que traz à superfície, o outro lado da história, o mais humano, o lado dos afectos.
Como é que surgiu esta ideia das memórias das histórias das gentes que fazem a história?
Cláudia Faria: O projecto surgiu na sequência do meu trabalho de mestrado de literatura e cultura, onde me debrucei sobre a família Phelps. Encontrei um diário de uma das filhas deste comerciante e decidi desse registo fazer um doutoramento. Tive de ler escrita privada, que é um novo tipo de documentação que não é muito utilizado na investigação histórica propriamente dita, porque por norma pesquisasse em documentos oficiais. Neste caso, tratava-se de um diário que estava guardado na gaveta de uma casa e depressa apercebi-me que nesta área, esta nova forma de encarar os estudos das ciências sociais e humanas estava a crescer. As fontes oficiais são importantes, estão a fazer um bom trabalho, mas temos de procurar o outro lado da história e como vamos ter acesso a esse outro lado? Através das próprias pessoas, do que escreveram, do que tem guardado sobre determinados acontecimentos que os marcaram, da sua própria vida, como perspetivavam esse tipo de eventos, o que sentiam quando partilhavam com os outros e que se podia extrair a partir desses momentos. Comecei então a ter contacto com esse tipo de informação e muito particularmente com uma associação que se chama IABA Europa (International Auto/biography Association), fundada por Philippe Lejeune, que se dedica ao estudo do eu, em inglês, “life writing”, ou seja, a escrita da vida. E depois partilhámos estes acontecimentos com o professor Alberto Vieira, que é o director do (CEHA), que achava que o centro poderia dar um contributo mais além, porque até agora tinha-se estudado apenas a história do açúcar e do vinho, sobretudo sobre a ilha da Madeira e foi a partir desse partilha de ideias é que o projecto começou.
E como é que extrapolou da história de uma família para os relatos de pessoas anónimas, emigrantes, comerciantes, pescadores, militares, etc. Como é que o projecto ganhou essa forma?
Graça Alves: A ideia é ver o outro lado da história, já que se tratava do diário de uma rapariga que passou por cá como viajante. Se desta forma podia-se ter uma outra visão sobre a ilha, sobre os acontecimentos do mundo, porque não procurar nas gentes que ainda estão vivas e que presenciaram alguns desses acontecimentos marcantes? Porquê não ir à procura das suas histórias? Ver de que forma a memória guardou e salvaguardou esses acontecimentos e como foram vistos. O projecto que apresentámos ao CEHA e que tem o aval do professor Alberto Vieira acaba por ser, esse outro lado. A partir do diário que a Cláudia esteve a estudar, da menina Phelps que escrevia tudo o que lhe acontecia na sua estadia pela ilha, partiu-se da ideia que também há pessoas que escrevem, ou registam tudo o que lhes acontece, que de alguma forma tem opiniões, outros olhares sobre o mundo.
Como é que descobriram estas famílias? Como foram recolhendo este espólio pessoal?
CF: Aquilo que existe de documentação oficial obviamente que fala das personalidades mais importantes, estamos a falar de governadores, médicos, juízes, etc. Gente que estava ligada ao poder local, regional e não queríamos essa parte da história, porque é a mais fácil, ou já esta feita, ou eventualmente cabe a outros fazerem. Queríamos os anónimos, as gentes comuns, o vizinho que presenciou o ataque da Alemanha ao Funchal, por exemplo. Pessoas que estivessem ligadas, ou tivessem testemunhado diversos acontecimentos ligados a ilha. Depois pensámos numa outra área de intervenção que é a emigração, é preciso olhar de outra forma para os partiram da Madeira e levaram a ilha consigo. Das pessoas que viveram nas colónias portuguesas e dos madeirenses que estiveram na guerra do ultramar, são experiências de vida que gostaríamos de recolher. Uns regressaram, outros não, mas todos têm muitas histórias para contar.
Como é que automatizam todas essas informações que recolhem?
GA: O projecto ainda esta muito no inicio, publicamente foi anunciado em Novembro, no colóquio das mobilidades, na Fundação João dos Passos. Por isso, estamos muito no princípio. Estamos na fase boca-a-boca, as pessoas vão falando no projecto, temos uma "newsletter" que esta a começar agora e que vai sendo divulgada e há pessoas que vêm até nós, ou pedem-nos para apresentar o projecto perante uma audiência. O nosso trabalho tem sido apenas de recolha mediante as pessoas que nos vão chegando. Este é um projecto que nem que tivéssemos sete vidas conseguíamos terminar. Estamos a começar devagar, com a noção exacta dos nossos limites, a alimentar também um blog com as memórias das gentes, pequenas histórias que de alguma maneira possam chamar outras histórias. Estávamos a gravar as entrevistas e a guarda-las e a digitalizar documentos e imagens. Não temos conclusões, nem temos a pretensão de as tirar, porque isto é um trabalho que não é apenas nosso, é algo que só pode ser feito em termos transdisciplinar, ou multidisciplinar, porque fala da vida das pessoas, dos seus movimentos, da parte psicológica, literária que advém do que escrevem, da parte histórica, económica e sociológica. Trata-se de um projecto que estamos a começar e outros irão continuar.
CF: A universidade sénior acabou por ser um trampolim para o projecto. Eles são nossos alunos e obviamente que tinham documentos e histórias para contar, ou conheciam alguém com um percurso interessante. Depois através da passa palavra as pessoas vêm ter connosco, ou nós vamos ter com elas. O primeiro passo é gravar a entrevista, para ver que história tem para contar. É uma conversa solta, sem qualquer modelo, nem topologia. Nós acompanhámos as memórias das pessoas e depois há pessoas que nos fornecem documentação, como sejam, cartas ou fotos, que pedimos para digitalizar e depois devolvemos o original ao seu proprietário. Neste momento estamos a criar ficheiros com esse material guardado. Não será nem eu, nem a Graça que vamos fazer o trabalho de investigação, nós estamos a recolher, á procura. Eventualmente poder-se-á desenvolver um estudo.
GA: De uma pequena parte…
CF: Sim, imagine alguém está nos EUA a desenvolver um trabalho sobre as guerras portuguesas no ultramar e anda à procura de testemunhos de quem passou por essa experiência, obviamente que vai contactar o centro e nós poderemos fornecer essa informação, ou seja, a pessoa pode consultar esses dados para fazer o seu estudo. É esta envolvência que pretendemos criar e também para ser consultado pelos locais.
Os registos também poderão ser consultados por privados em busca das histórias dos seus familiares, ou antepassados, já que esta é uma terra de emigrantes.
CF: Sim, embora o arquivo regional tem um trabalho muito interessante nessa área. As pessoas vão a procura dos seus familiares, através de registos de baptismo ou de casamento, ou de óbito.
Qual é a importância do blog nesta vossa recolha de memórias?
GA: O blog tem duas grandes funções, uma que é de divulgação porque contámos sempre as histórias das pessoas, embora sejam pequenos extractos, historiazinhas que não parecem muito, mas que servem para chamar à atenção do trabalho. Por outro lado, o blog funciona como uma forma de catapultar as memórias que nos são contadas, porque parecem coisas de nada, mas são as únicas recordações que as pessoas têm, estão lá a servir como exemplo, que vá passando para outros. O que temos de pensar é que a história da ilha, da Madeira, de qualquer sítio, não pode ser feita apenas daqueles que a fizeram acontecer. Tem o outro lado, das pessoas comuns, como nós, que trabalharam para fazer desta terra o que é e que é que estamos a mostrar no blog. Vai servindo como chamariz para chamar outros. E tornar-nos protagonistas, actores da história da ilha.
Apercebei-me pela vossa apresentação que as memórias provêm basicamente do Funchal, mas vocês não pretendem apenas as histórias da capital.
CF: De maneira nenhuma. O centro é sobre a história do Atlântico e se temos um propósito nesta casa, é espelhar essa realidade, não é só madeirense, ou insular. É muito para além disso. Se calhar nesta fase é mais o Funchal, porque estamos aqui sediados, a universidade sénior funciona aqui, muitas pessoas vivem na cidade, mas, por exemplo, uma das histórias que partilhámos, do senhor Manuel, é da Ponta do Pargo. O que demonstra que estamos indo para além dessa busca dentro da capital.
De todas as histórias que já recolheram com certeza há uma mais marcante, mais caricata, que gostam de recontar.
GA: Todas as histórias têm o seu quê de importante para nós, porque de alguma forma estas histórias têm-nos feito crescer como pessoas. E muitas vezes surgem do nada. Rapidamente, uma das histórias surgiu à mesa da minha sala de jantar, um casal idosos e os seus filhos que são meus amigos foram tomar chá para ver o presépio e em conversa perguntei se não conheciam alguém que tivesse ido até o ultramar e o pai disse-me que tinha estado lá. Era a história de um soldado, que teve um sabor especial para mim, primeiro porque surgiu do nada, nem sabia que ele tinha ido para a guerra e depois teve outro aspecto delicioso é que contou certos momentos desse percurso que nem os filhos sabiam e eles já tem mais de 40 anos. E de repente ele sentiu-se aliviado, porque partilhou uma história que estava ali guardada, porque o fazia sofrer certamente. Foi talvez a que mais prazer me deu de ouvir. Tive de ouvi-la sozinha, embora seja um trabalho conjunto, só que não podia perder essa oportunidade. É a minha história do coração. Mas, há outras. Acho delicioso que uma criança, com 12 anos, vá sozinha num barco em direcção à África do Sul, deixando para atrás a família no cais, o pai e a professora, excepto a mãe (é aliás, um traço comum de todas estas histórias, elas não vão vê-los partir). Outras fazem-nos rir, mais uma vez, no caso do senhor Manuel que viajou sozinho numa embarcação onde só se falava inglês e, por isso, esteve atento ao que o vizinho do lado pedia e como disse “fish” e ele não sabia o que queria dizer essa palavra, acabou por comer peixe todos os dias no barco, porque também não conhecia outra. Há esses aspectos mais caricatos, mas também existe um outro lado muito sério e isso atrapalhámos um pouco, porque as pessoas estão a contar-nos a sua história, de repente calam-se e choram e nós não sabemos o que havemos de fazer, porque não sabemos se esse recordar é algo bom, ou mau para elas. Estamos aprendendo a gerir as emoções que se vão desencadeando, porque mexem em coisas que estavam guardadas.
CF: Para mim a que mais me tocou foi a história do senhor Almano Gomes, as suas peripécias pelo mundo da música no Funchal. As tantas fala de um teatro revista organizado pelo Marítimo e ao ver as fotografias diz-me que cantava um dos temas com uma rapariga chamada Odete Gama e de repente descubro que essa jovem era a minha madrinha, o senhor Almano revive as suas memórias e eu revisito mentalmente a casa da minha madrinha, onde toda a gente estava ligada a música, onde se cantava e era sempre uma animação. Nesta troca, deixei de ser a professora, passei a ser a afilhada da Odete com quem ele passou bons momentos e ali se criou uma ligação muito forte até chegar ao ponto de descobrir que a minha mãe gravou um disco. Estou eu à procura da memória dos outros e acabo por descobrir a minha. Acho que essa é grande validade deste projecto, não estamos sós e tudo isto tem a ver connosco.
Porquê é que as pessoas sentem essa necessidade de vós contar essas histórias? Haverá já um certo distanciamento afectivo desses momentos, em particular, dessas memórias mais dolorosas.
GA: Alguns sim, no caso da guerra do ultramar que foi uma época muito marcante. Há outras pessoas, que apesar de terem rasgado as cartas, as fotografias que as faziam sofrer, já conseguem contar essas mesmas histórias, porque existe uma distância desses factos. E também porque de repente, no mundo de hoje, eles encontraram duas pessoas que os ouvem. Estamos a falar de pessoas com mais de 60 anos e os filhos muitas vezes não tem tempo para os ouvir. Somos alguém que lhes dá atenção e que provam que eles foram pessoas muito importantes, que tiveram um papel preponderante na história da ilha e isso fá-los sentir que valeu a pena. É algo bom e de algum protagonismo. Toda a gente gosta em algum momento da sua vida de ser o actor principal.
http://memoriadasgentes.blogspot.pt/2013_02_01_archive.html
http://www.madeira-edu.pt/ceha/tabid/1271/Default.aspx
http://www.iaba-europe.eu/