Por ser um texto intrinsecamente insular, podias encenar este espectáculo em qualquer ponto do país?
EC: Eu penso que sim, porque eu compreenderia. Não é fechado, talvez não compreendem-se o nosso sotaque em algumas partes. Só isso. Como mensagem, se ressoaria na mesma como nos madeirenses, da mesma forma? Não sei. Mas, há um lado shakesperiano no que o Ernesto Leal escreve, atenção. Eu acho que a sua mensagem universal. Quando conta a história de uma anona, com as suas sementes negras, quem compreendera isso? O madeirense entendera melhor, o palco tem este alcance, podemos estar a falar de algo local, que parece caseiro, mas que toca o coração dos espectadores de outros mundos. Nós encenámos o Alberto Caeiro com sotaque madeirense, mais “a carta da corcunda para o serralheiro”, um dos poucos textos que se diz de que, Fernando Pessoa escreveu no feminino e andámos pela ilha com estes textos e toda a gente vibrava e pensava, de quem é este texto? Quando dizíamos o nome do autor, ficava toda a gente muito espantada. Acredito que os contos de Ernesto Leal teriam o mesmo efeito, este que estamos a usar, tem um texto chamado o boi, é quase um dialogo, é um homem que se apaixona pelo seu animal. Trata-se de um conto com uma grandeza que ultrapassa a geografia. O Ernesto não a tinha limites físicos, tinha um coração madeirense, trazia a ilha consigo e foi essa riqueza que ele preservou até o final da vida dele.
Sendo um artista sobretudo ligado ao teatro, como vês o público madeirense? Eles vêem aos espectáculos?
EC: Vêem, mas pouco. Posso falar pelo TEF, é um fenómeno que atinge os 12 mil espectadores por ano, sobretudo por causa do teatro para a infância. As crianças são obrigadas a vir, como dizem muitas vezes. Não é verdade. Há um trabalho sério, dados concretos e mérito dos profissionais, se não os professores não os traziam até cá para ver as peças. O teatro para adultos também, mas imaginemos que tenho 125 mil potenciais espectadores, nós só chegámos aos 12 mil que referi. São os mesmos que vão ver a com.tema e outro tipo de companhias com estruturas diferentes, mais profissionais ou menos. Há um grande público por conquistar, mas antes de mais é necessário mudar a atitude cultural dos madeirenses. Depois há fenómenos curiosos, em 2003, no Funchal, metade de uma audiência escolar se levantou da sala e saíram todos ofendidos assim que começámos a dizer o poema oitavo, que é sobre o menino Jesus de Alberto Caeiro. Depois montámos o espectáculo em alguns salões paroquiais, mas antes avisávamos os párocos, uns diziam muito bem e outros ficavam desconfiados, o poema refere que tudo no céu é estúpido como a igreja católica. Se lermos o texto todo, verificámos que é um poema lindíssimo. Isto vêm a propósito do que é o público madeirense e que nem tudo é como imaginámos. Em São Vicente, tivemos um espectáculo em que as pessoas normalmente riam-se, mas neste em particular, não reagiram e estavam muito caladas. Pensámos que estava tudo a correr tudo muito mal, após uma hora de espectáculo. No final, umas velhinhas aproximaram-se e disseram-nos que tinham gostado muito, mas que não se puderam rir, porque estava lá o senhor presidente da câmara da Calheta. (risos)
Como um actor com uma exposição mediática maior, devido as tuas participações em telenovelas e numa série juvenil, isso fez com que mais pessoas viessem ao teatro?
EC: Não. De certeza mais duas ou três pessoas já vieram até o teatro, depois de conhecer o meu trabalho na televisão, mas não é suficiente. A não ser que fosse um elenco inteiro, e não é isso que o TEF tem. São fenómenos de marketing. Tenho a certeza que mais pessoas vieram, mas não encheram a sala. A televisão foi um acidente aos 33 anos. No teatro, trabalhei em Lisboa, comparando a média de espectadores, cá é muito boa, de fazer inveja a muitos colegas meus e companhias que lá existem, de maneira que são mais de 100 espectadores por espectáculo, cem apresentações por ano de diferentes produções. Se nos podemos comparar-nos a cornucópia, ou ao teatro aberto? Não há comparação, nós trabalhamos com públicos diferentes, de forma diversa e até financiamentos diferentes. O TEF não trabalha para o seu umbigo, fazemo-lo para as pessoas. Não é para entreter, é para faze-los pensar. Eu revejo-me no teatro, tenho trabalhado nesta equipa, nasci aqui como actor e não sou provinciano em relação a isso, queremos levar as pessoas até as ideias e para entretê-los há pessoas que o fazem muito bem, é a área dos humoristas.
O teu meio natural é o teatro então? Porque referiste a pouco que a televisão foi um acidente.
EC: É porque nunca sabemos o que vai acontecer. Se vamos ser convidados ou não. Se foi magnifico? Foi, gostei muito. Se há diferenças? Sim, claro que existem. Não estamos a recitar Shakespeare. Ser natural é um trabalho que exige muito do actor. Eu costumo dizer que no momento em que se está a gravar, ou no palco, é preciso estar presentes, sermos actores. Para isso é necessário trabalhar. Foi um acidente, espero que aconteça mais vezes. É algo que tem um lado estúpido, uma pessoa que esta a fazer teatro vinte anos, como a Paula Guerra não é conhecida como um rapaz que participa nos morangos com açúcar, mas é assim. Se isso atrai pessoas ao teatro? Não tenho a certeza absoluta. Poderá atrair os mais novos, talvez, mas é tão efémero. Tenho os pés bem assentes na terra. Eu continuo aqui, a guinchar há mais de vinte anos em cima do palco.
Nestes vinte anos de carreira como actor, notastes uma evolução? Eu quando vou ao teatro nota-se um hiato geracional, aparecem as pessoas mais velhas, habituadas a ver as revistas e os mais novos, mas publico da minha idade não.
EC: Nota-se e até te digo que o TEF está a fazer teatro infantil para a infância e não é líquido que eles venham até o teatro, temos dados expressivos nesse sentido, devemos ser a companhia ao nível nacional com o maior número de espectáculos para as crianças. Há uma faixa etária que vai dos 15 anos até os 35 anos, que prefere gastar o dinheiro de um espectáculo numa bebida. Tem depois os diversos meios que lhes criam a ilusão de participação, que é o facebook e outros produtos televisivos. Vinte anos depois, não há uma evolução nesse sentido, existem sim, mais talentos. Há mais pessoas a se formarem ao contrário do que possa parecer. Também, aparecem os que querem ser actores para serem famosos. Muitos vêem ter comigo a dizer que querem ser actores dos morangos, eu digo não, antes tem que apostar na tua formação. Mas, é preciso? Pois, é necessário e são as pessoas que apostam na sua formação que mais tempo se aguentam no seu viver artístico. Não houve retrocesso, há mais criatividade e o público não aumentou. Porquê? Há mais concorrência, mais actividades e pouco interesse no teatro. Se, nós os agentes estamos a falhar? Talvez. Dizem-nos: façam mais comédias ligeiras. Nós não abdicámos do princípio que o teatro é fruição e também de reflexão em doses equilibradas. Há quem diga que a estratégia passa por nós, sermos menos fechados, mas eu falando pelo TEF posso dizer que sempre fomos muito ecléticos. Nós fazemos tudo, até autores gregos e contudo o público de que estas a falar, não aparece. Depois temos os que falam de um teatro para a juventude, mas o que é isso? Fazer umas coisas mais próximas de morangos com açúcar, será que é isso? Vinte anos depois eu sinto isso e mais ainda oiço as pessoas dizerem, é tão bom que até parece de fora, não é normal. Não devia acontecer.
Notam a diferença em termos de público, quando encenam uma peça mais cómica de outra dita séria?
EC: À partida sim. As pessoas não querem ver tristezas. Há coisas que nós conseguimos fazer com este espectáculo, “madeira my dear”, é uma tragicomédia, tem momentos tocantes e profundos, porquê? Porque tem muita poesia, se não tivesse uma carga cómica também seria mais um livro, se é feito com propósito de captar mais público? Não, mas é um espectáculo, não podia ser um recital de poesia do Ernesto Leal. Eu gosto muito da comédia dramática. Mas, nem sempre é possível de encontrar os textos. Depois temos fenómenos de público, como o texto de Horton Wilder, um clássico de todos os tempos, “ a nossa cidade”, o teatro estava sempre cheio, um drama ainda por cima, fala da vida, da morte. Depois fizemos “a greve do sexo”, de Aristófanes, sempre com muito público.
Então o teatro não morreu, porque vão até as salas e há público.
EC: Sim, o teatro tem algo que o distingue que é a presença. Não existe em mais lado nenhum, eu tenho aquela sala, vou partilhar essa co-espacialidade com aquele artista. Isto é único. Há pessoas que dizem que nos queixámos por falta de público, as escolas já não vêm até nós, por causa do problema dos transportes. O preço do bilhete é mais caro, do que o ingresso para o teatro. Há sempre ideias, como levar o teatro até as escolas e existem grupos que o fazem, mas nós ainda achámos que o teatro é o local para onde vamos, por isso vale a pena sair de casa e as pessoas tem que se mexer. Nós queremos que venham, não por comodismo nosso, mas porque queremos que haja aquela magia, rasgar o bilhete à porta do teatro, o ritual de entrar na plateia. Isso fica com as crianças.
E nas tournées pela ilha o que verificas?
EC: Nota-se de tudo. Fiz uma peça no Curral dos Romeiros, numa garagem, foi um dos espectáculos mais belos da minha vida. Uma vez, eu e o Bruno Bravo montámos uma peça pelo TEF, de um texto de Raimundo Gomes de la Serna, “as rosas suicidam-se”, são aforismos, somos os dois sentados em duas máquinas de veneno e um biombo. É um livro lindíssimo que foi adaptado pela primeira vez ao nível nacional para teatro pela nossa companhia. Nós andámos pela ilha e aparecíamos os dois nus integralmente e teve uma itinerância lindíssima. Na antiga casa das Mudas, estivemos cinco minutos à espera que as pessoas, especialmente as mulheres, parassem de rir para continuar com o espectáculo. Pensámos até que íamos ser expulsos e era um texto puxado, que levava a pensar e as pessoas gostaram.
Qual achas que vai ser a evolução do teatro, nos próximos vinte anos?
EC: Eu espero que nos próximos vinte anos se evolua, porque até agora foi muito pouco. É uma questão de educação e respeito. Valorização do que se tem feito, muitas vezes parece que se está na estaca zero.
Achas que tem a ver com o facto de ser uma arte subsidiada?
EC: Eu costumo dizer que é preciso esse incentivo para trabalhar e o Luís Miguel Cintra diz mal comparando, ele é uma sumidade no teatro nacional e completamente subsídio dependente. Quando é dado para isso e com provas dadas, acho que é válido como em qualquer outra área. Fico a pensar nos médicos que são subsidiados para curar os doentes, nos professores que são subsidiados para educar e se o estado tem esta causa social, o teatro também não o merece? Pode-se subsidiar uma companhia para dar ideias. Criar, não entreter. Às vezes, a sensação é de quase pedincha. Sim, nós estamos aqui, trabalhámos profissionalmente, necessitámos de 8 horas por dia para montar um espectáculo. É preciso explicar todas as vezes até a exaustão o mesmo, como se não tivéssemos a fazer isto há mais de 20 anos? Atenção, idade não é posto, falando especificamente do TEF. Perguntam coisas como, é preciso tanto tempo para fazer teatro? Sim, somos profissionais. Não podem faze-lo no final do dia? Podem os amadores, os profissionais necessitam de um trabalho mais longo, a preparação de uma dramaturgia, de um texto atempadamente. Temos de repetir isto várias vezes, porque se confunde muito o amador com o profissional e nesse aspecto não se evoluiu quase nada.
Porquê é que isso acontece?
EC: Por falta de formação em termos culturais. Não distinguem um espectáculo péssimo de um com qualidade. Há pessoas no público que ainda não distinguem o actor que canta o texto, daquele que o declama correctamente. Infelizmente isso acontece. Também passa pelos amadores não achincalharem os profissionais e vice-versa. Nenhum substitui o outro. Há uma confusão generalizada, que compara as três produções por ano, de Luís Miguel Cintra que custam 700 mil euros, com grandes figurinos e cenários e a própria produção teatral do TEF engloba uma programação em que mais de 50% dos textos são de autores portugueses, por acaso, 40% da grande dramaturgia do mundo e os restantes de textos que nem sequer tem forma teatral e são transformados nesse sentido, com um produtor amador que afirma que encenou quatro peças com zero euros. Falta educação e sensibilização.





