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O trovador de ideias

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O Élvio Camacho é um apaixonado pela sua arte há mais de vinte anos. Um percurso profissional abnegado cheio de altos e baixos, que assenta sobretudo na actividade do Teatro Experimental do Funchal. É no palco que nasceu e cresceu como actor. É o seu meio natural, onde procura extrapolar o imaginário em cena para o público, para que as palavras ressoem na audiência e os façam pensar.

Escolheram colocar em cena o “Madeira my dear”, uma peça com apenas duas personagens e com uma temática muito regional. Porquê essa escolha?

Élvio Camacho: O funcionamento em parelha já é teatro. Costumámos dizer que um actor só pode fazer um monólogo, mas o restante é essencialmente contra-cena. Sempre gostei de fazer espectáculos com apenas duas pessoas. Há uns anos atrás fiz uma parelha com a Paula Guerra, com textos do Alberto Caeiro, fizemos um espectáculo itinerante que ainda hoje está no reportório do Teatro Experimental do Funchal (TEF). O porquê deste “Madeira my dear”? É baseado em três contos do Ernesto Leal, que é um madeirense que faria no ano de 2013 100 anos. É alguém muito viajado que nos deixou quatro textos sobre a Madeira da sua infância, que ele deixou, que nunca desdenhou e deixou-nos uma impressão sobre essa ilha, magnifica. O homem que comia névoa. Tio, ilha, anonas e estrelas dizem algo a qualquer madeirense que lê esses contos, pela maneira como são escritos, as pessoas ressoam neles. Revêem-se nos mesmos. Ernesto Leal já merecia que se adaptassem estes textos ao teatro, até porque tem uma teatralidade implícita, há muito diálogo e pensámos porque não adapta-lo e mostra-lo aos madeirenses?

Porquê? É ainda muito actual passados quase cem anos?

EC: No teatro não fazemos reconstituição da arqueologia, isso faz o folclore e a fotografia. São actuais porque falam de princípios eternos, da névoa, se calhar nós não fazemos milho numa panela de ferro de três peças, assentes num chão de terra como descreve, mas todos nós sabemos o que é isso.

A idiossincrasia dos madeirenses está lá?

EC: Completamente. A neblina da montanha, do eco, como nós soamos. Há um texto do Ernesto Leal que explica o sotaque madeirense, ele diz que soámos como uma braguinha, o instrumento tradicional, também devido a orografia da ilha que faz com que necessitemos de ser ouvidos do outro lado. É de uma modernidade espantosa. É eterno em nós. Temos o mar que tempera tudo à nossa volta, uma montanha que nos provoca ecos e ouvimo-nos demasiado. São contos que todos os madeirenses deviam ouvir. O titulo “Madeira my dear”, é de uma música celebre de uma dupla Donald and Swan, dos anos 50, que fizeram um espectáculo chamado, “how to drop of a hat” e um dos temas é “have some madera my dear”, é um velhote que convida uma rapariga jovem para beber um cálice de vinho madeira na sua casa e daí a brincadeira. Eu pensei que a universalidade do Ernesto Leal dá este toque de brinde à Madeira. Estamos a fazer acção local, mas a falar para o mundo inteiro, por isso, deve-se coloca-lo como título do espectáculo, que também se poderia chamar o homem que comia névoa.

É um título lindo.

EC: É, mas este texto está na íntegra no espectáculo, mas como são três contos do Ernesto Leal e não são apenas um pretexto na peça, são respeitados e tivemos de encurtar algumas partes por serem extensas e não se adequarem ao palco e ao que nós precisávamos, mas é o universo do autor e existem vídeos no meio do espectáculo, dos nossos tempos, de uma personagem que trabalha aqui no cine teatro, é uma personalidade madeirense que faz um convite à imaginação. Falámos de ipads, de furnas e vamos mais além, o que o Ernesto Leal está a incentivar? A capacidade de imaginário de qualquer pessoa do mundo, sem ser madeirense, o espectáculo tem essa capacidade de não ser uma fotografia dos textos do Ernesto Leal serem escarrapachados no palco. Temos de criar ideias sobre esses textos.

Por ser um texto intrinsecamente insular, podias encenar este espectáculo em qualquer ponto do país?

EC: Eu penso que sim, porque eu compreenderia. Não é fechado, talvez não compreendem-se o nosso sotaque em algumas partes. Só isso. Como mensagem, se ressoaria na mesma como nos madeirenses, da mesma forma? Não sei. Mas, há um lado shakesperiano no que o Ernesto Leal escreve, atenção. Eu acho que a sua mensagem universal. Quando conta a história de uma anona, com as suas sementes negras, quem compreendera isso? O madeirense entendera melhor, o palco tem este alcance, podemos estar a falar de algo local, que parece caseiro, mas que toca o coração dos espectadores de outros mundos. Nós encenámos o Alberto Caeiro com sotaque madeirense, mais “a carta da corcunda para o serralheiro”, um dos poucos textos que se diz de que, Fernando Pessoa escreveu no feminino e andámos pela ilha com estes textos e toda a gente vibrava e pensava, de quem é este texto? Quando dizíamos o nome do autor, ficava toda a gente muito espantada. Acredito que os contos de Ernesto Leal teriam o mesmo efeito, este que estamos a usar, tem um texto chamado o boi, é quase um dialogo, é um homem que se apaixona pelo seu animal. Trata-se de um conto com uma grandeza que ultrapassa a geografia. O Ernesto não a tinha limites físicos, tinha um coração madeirense, trazia a ilha consigo e foi essa riqueza que ele preservou até o final da vida dele.

Sendo um artista sobretudo ligado ao teatro, como vês o público madeirense? Eles vêem aos espectáculos?

EC: Vêem, mas pouco. Posso falar pelo TEF, é um fenómeno que atinge os 12 mil espectadores por ano, sobretudo por causa do teatro para a infância. As crianças são obrigadas a vir, como dizem muitas vezes. Não é verdade. Há um trabalho sério, dados concretos e mérito dos profissionais, se não os professores não os traziam até cá para ver as peças. O teatro para adultos também, mas imaginemos que tenho 125 mil potenciais espectadores, nós só chegámos aos 12 mil que referi. São os mesmos que vão ver a com.tema e outro tipo de companhias com estruturas diferentes, mais profissionais ou menos. Há um grande público por conquistar, mas antes de mais é necessário mudar a atitude cultural dos madeirenses. Depois há fenómenos curiosos, em 2003, no Funchal, metade de uma audiência escolar se levantou da sala e saíram todos ofendidos assim que começámos a dizer o poema oitavo, que é sobre o menino Jesus de Alberto Caeiro. Depois montámos o espectáculo em alguns salões paroquiais, mas antes avisávamos os párocos, uns diziam muito bem e outros ficavam desconfiados, o poema refere que tudo no céu é estúpido como a igreja católica. Se lermos o texto todo, verificámos que é um poema lindíssimo. Isto vêm a propósito do que é o público madeirense e que nem tudo é como imaginámos. Em São Vicente, tivemos um espectáculo em que as pessoas normalmente riam-se, mas neste em particular, não reagiram e estavam muito caladas. Pensámos que estava tudo a correr tudo muito mal, após uma hora de espectáculo. No final, umas velhinhas aproximaram-se e disseram-nos que tinham gostado muito, mas que não se puderam rir, porque estava lá o senhor presidente da câmara da Calheta. (risos)

Como um actor com uma exposição mediática maior, devido as tuas participações em telenovelas e numa série juvenil, isso fez com que mais pessoas viessem ao teatro?

EC: Não. De certeza mais duas ou três pessoas já vieram até o teatro, depois de conhecer o meu trabalho na televisão, mas não é suficiente. A não ser que fosse um elenco inteiro, e não é isso que o TEF tem. São fenómenos de marketing. Tenho a certeza que mais pessoas vieram, mas não encheram a sala. A televisão foi um acidente aos 33 anos. No teatro, trabalhei em Lisboa, comparando a média de espectadores, cá é muito boa, de fazer inveja a muitos colegas meus e companhias que lá existem, de maneira que são mais de 100 espectadores por espectáculo, cem apresentações por ano de diferentes produções. Se nos podemos comparar-nos a cornucópia, ou ao teatro aberto? Não há comparação, nós trabalhamos com públicos diferentes, de forma diversa e até financiamentos diferentes. O TEF não trabalha para o seu umbigo, fazemo-lo para as pessoas. Não é para entreter, é para faze-los pensar. Eu revejo-me no teatro, tenho trabalhado nesta equipa, nasci aqui como actor e não sou provinciano em relação a isso, queremos levar as pessoas até as ideias e para entretê-los há pessoas que o fazem muito bem, é a área dos humoristas.

O teu meio natural é o teatro então? Porque referiste a pouco que a televisão foi um acidente.

EC: É porque nunca sabemos o que vai acontecer. Se vamos ser convidados ou não. Se foi magnifico? Foi, gostei muito. Se há diferenças? Sim, claro que existem. Não estamos a recitar Shakespeare. Ser natural é um trabalho que exige muito do actor. Eu costumo dizer que no momento em que se está a gravar, ou no palco, é preciso estar presentes, sermos actores. Para isso é necessário trabalhar. Foi um acidente, espero que aconteça mais vezes. É algo que tem um lado estúpido, uma pessoa que esta a fazer teatro vinte anos, como a Paula Guerra não é conhecida como um rapaz que participa nos morangos com açúcar, mas é assim. Se isso atrai pessoas ao teatro? Não tenho a certeza absoluta. Poderá atrair os mais novos, talvez, mas é tão efémero. Tenho os pés bem assentes na terra. Eu continuo aqui, a guinchar há mais de vinte anos em cima do palco.

Nestes vinte anos de carreira como actor, notastes uma evolução? Eu quando vou ao teatro nota-se um hiato geracional, aparecem as pessoas mais velhas, habituadas a ver as revistas e os mais novos, mas publico da minha idade não.

EC: Nota-se e até te digo que o TEF está a fazer teatro infantil para a infância e não é líquido que eles venham até o teatro, temos dados expressivos nesse sentido, devemos ser a companhia ao nível nacional com o maior número de espectáculos para as crianças. Há uma faixa etária que vai dos 15 anos até os 35 anos, que prefere gastar o dinheiro de um espectáculo numa bebida. Tem depois os diversos meios que lhes criam a ilusão de participação, que é o facebook e outros produtos televisivos. Vinte anos depois, não há uma evolução nesse sentido, existem sim, mais talentos. Há mais pessoas a se formarem ao contrário do que possa parecer. Também, aparecem os que querem ser actores para serem famosos. Muitos vêem ter comigo a dizer que querem ser actores dos morangos, eu digo não, antes tem que apostar na tua formação. Mas, é preciso? Pois, é necessário e são as pessoas que apostam na sua formação que mais tempo se aguentam no seu viver artístico. Não houve retrocesso, há mais criatividade e o público não aumentou. Porquê? Há mais concorrência, mais actividades e pouco interesse no teatro. Se, nós os agentes estamos a falhar? Talvez. Dizem-nos: façam mais comédias ligeiras. Nós não abdicámos do princípio que o teatro é fruição e também de reflexão em doses equilibradas. Há quem diga que a estratégia passa por nós, sermos menos fechados, mas eu falando pelo TEF posso dizer que sempre fomos muito ecléticos. Nós fazemos tudo, até autores gregos e contudo o público de que estas a falar, não aparece. Depois temos os que falam de um teatro para a juventude, mas o que é isso? Fazer umas coisas mais próximas de morangos com açúcar, será que é isso? Vinte anos depois eu sinto isso e mais ainda oiço as pessoas dizerem, é tão bom que até parece de fora, não é normal. Não devia acontecer.

Notam a diferença em termos de público, quando encenam uma peça mais cómica de outra dita séria?

EC: À partida sim. As pessoas não querem ver tristezas. Há coisas que nós conseguimos fazer com este espectáculo, “madeira my dear”, é uma tragicomédia, tem momentos tocantes e profundos, porquê? Porque tem muita poesia, se não tivesse uma carga cómica também seria mais um livro, se é feito com propósito de captar mais público? Não, mas é um espectáculo, não podia ser um recital de poesia do Ernesto Leal. Eu gosto muito da comédia dramática. Mas, nem sempre é possível de encontrar os textos. Depois temos fenómenos de público, como o texto de Horton Wilder, um clássico de todos os tempos, “ a nossa cidade”, o teatro estava sempre cheio, um drama ainda por cima, fala da vida, da morte. Depois fizemos “a greve do sexo”, de Aristófanes, sempre com muito público.

Então o teatro não morreu, porque vão até as salas e há público.

EC: Sim, o teatro tem algo que o distingue que é a presença. Não existe em mais lado nenhum, eu tenho aquela sala, vou partilhar essa co-espacialidade com aquele artista. Isto é único. Há pessoas que dizem que nos queixámos por falta de público, as escolas já não vêm até nós, por causa do problema dos transportes. O preço do bilhete é mais caro, do que o ingresso para o teatro. Há sempre ideias, como levar o teatro até as escolas e existem grupos que o fazem, mas nós ainda achámos que o teatro é o local para onde vamos, por isso vale a pena sair de casa e as pessoas tem que se mexer. Nós queremos que venham, não por comodismo nosso, mas porque queremos que haja aquela magia, rasgar o bilhete à porta do teatro, o ritual de entrar na plateia. Isso fica com as crianças.

E nas tournées pela ilha o que verificas?

EC: Nota-se de tudo. Fiz uma peça no Curral dos Romeiros, numa garagem, foi um dos espectáculos mais belos da minha vida. Uma vez, eu e o Bruno Bravo montámos uma peça pelo TEF, de um texto de Raimundo Gomes de la Serna, “as rosas suicidam-se”, são aforismos, somos os dois sentados em duas máquinas de veneno e um biombo. É um livro lindíssimo que foi adaptado pela primeira vez ao nível nacional para teatro pela nossa companhia. Nós andámos pela ilha e aparecíamos os dois nus integralmente e teve uma itinerância lindíssima. Na antiga casa das Mudas, estivemos cinco minutos à espera que as pessoas, especialmente as mulheres, parassem de rir para continuar com o espectáculo. Pensámos até que íamos ser expulsos e era um texto puxado, que levava a pensar e as pessoas gostaram.

Qual achas que vai ser a evolução do teatro, nos próximos vinte anos?

EC: Eu espero que nos próximos vinte anos se evolua, porque até agora foi muito pouco. É uma questão de educação e respeito. Valorização do que se tem feito, muitas vezes parece que se está na estaca zero.

Achas que tem a ver com o facto de ser uma arte subsidiada?

EC: Eu costumo dizer que é preciso esse incentivo para trabalhar e o Luís Miguel Cintra diz mal comparando, ele é uma sumidade no teatro nacional e completamente subsídio dependente. Quando é dado para isso e com provas dadas, acho que é válido como em qualquer outra área. Fico a pensar nos médicos que são subsidiados para curar os doentes, nos professores que são subsidiados para educar e se o estado tem esta causa social, o teatro também não o merece? Pode-se subsidiar uma companhia para dar ideias. Criar, não entreter. Às vezes, a sensação é de quase pedincha. Sim, nós estamos aqui, trabalhámos profissionalmente, necessitámos de 8 horas por dia para montar um espectáculo. É preciso explicar todas as vezes até a exaustão o mesmo, como se não tivéssemos a fazer isto há mais de 20 anos? Atenção, idade não é posto, falando especificamente do TEF. Perguntam coisas como, é preciso tanto tempo para fazer teatro? Sim, somos profissionais. Não podem faze-lo no final do dia? Podem os amadores, os profissionais necessitam de um trabalho mais longo, a preparação de uma dramaturgia, de um texto atempadamente. Temos de repetir isto várias vezes, porque se confunde muito o amador com o profissional e nesse aspecto não se evoluiu quase nada.

Porquê é que isso acontece?

EC: Por falta de formação em termos culturais. Não distinguem um espectáculo péssimo de um com qualidade. Há pessoas no público que ainda não distinguem o actor que canta o texto, daquele que o declama correctamente. Infelizmente isso acontece. Também passa pelos amadores não achincalharem os profissionais e vice-versa. Nenhum substitui o outro. Há uma confusão generalizada, que compara as três produções por ano, de Luís Miguel Cintra que custam 700 mil euros, com grandes figurinos e cenários e a própria produção teatral do TEF engloba uma programação em que mais de 50% dos textos são de autores portugueses, por acaso, 40% da grande dramaturgia do mundo e os restantes de textos que nem sequer tem forma teatral e são transformados nesse sentido, com um produtor amador que afirma que encenou quatro peças com zero euros. Falta educação e sensibilização.

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