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Fantasmas e fantasias do brumário

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É um dos tomo do ciclo poético iniciado com "Brumário" e "Derivações do Brumário". Segundo a escritora cabo-verdiana Fátima Bettencourt “é uma obra enciclopédica não tanto pela extensão do texto, mas pela sua intensidade e pela urgência como nos encita a olhar para os clássicos, não só em visitas rápidas, mas em permanente convívio. Arménio Vieira oferece estes poemas como quem atira pedras perfumadas”.

Porquê Brumário?
Arménio Vieira: Já me fizeram essa pergunta mais de mil vezes, uma das correlações pode ser essa história do golpe de Napoleão Bonaparte, mas outra de um fenómeno cabo-verdiano que aparece no mês de Janeiro, sobretudo quando os aviões não decolam. Agora não, porque à noite é possível.

O brumário é a odisseia do povo cabo-verdiano?
AV: Eu quando começo a escrever não escolho o tema é quase um momento de meditação, é quando surge a primeira frase e daí para frente não paro, depois há a reescrita. Dizer que o brumário é uma odisseia se calhar de superação da miséria, fiz uma viagem até chegar à independência, porque eu sou de lá. Eu não estou a pensar em Cabo-Verde, há qualquer coisa que esta em mim e o meu país também estará.

Também disse que era um escritor disruptivo, que queria romper um pouco...
AV: Um pouco não, totalmente. É um corte epistemológico como quando Copérnico aparece com uma nova teoria há um corte, que ele assume e ia morrendo e essa noção de revolucionário clássico foi atribuído a um homem da igreja, até porque ele era padre. Quando Darwin começa a investigar a sua teoria da evolução, em termos de ciência natural, foi um salto, uma revolução.

Por isso quis fazer esse rompimento em termos de escrita?
AV: Não quis fazer isso, acontece, não comando. Existe algo em mim, um demónio, um Deus, um anjo que me faz fazer isso, não é pensado, é quase instintivo. Eu vou-lhe contar, antes da independência a gente escrevia poemas libertários, apesar de haver o mesmo fundo político a poesia foi escolhendo temas que depois ultrapassei. Quando chegámos à independência eu disse para mim se fosse mulher eu teria atingido a menopausa, já não vou parir mais, cumpri e acabou, mas esse vírus poético estava lá e fez-me escrever de outra maneira. Há um momento importante na minha vida que é quando fiz uma viagem à União Soviética e em termos poéticos não aprendi absolutamente nada, mas no regresso o meu amigo Mário Fonseca, que na altura era um dos poetas máximo de Cabo-Verde, o mais precoce, disse-me assim, Arménio o que andas a ler? O que aparecer, porque no meu país não existem bibliotecas e ele ofereceu-me os grandes clássicos franceses. Li Baudelaire, Rambaud, Verlaine, Valerie, Prévert a conselho dele em vez de os ler por prazer, fi-lo por obrigação, lia, relia e estudava e no meio daquilo lembro-me que me ofereceu um livro de Ezra Pound um grande poeta americano que depois se envolveu com o facismo italiano e foi diabolizado por isso, foi o único americano que falou sobre Camões colocando-o num lugar muito alto, dizia sobre ele que era um poeta que sabia tudo o que havia para saber. O poeta não deve apenas escrever, deve saber e assimilar os grandes escritores foi o que fiz e acho que não foi cansativo, não me chateou.

E onde é que entra Shakespeare no brumário?
AV: Foi obrigado a ler essas grandes peças. Não os escolhi, eles apareceram na minha vida, eu não os procurava, alguém sempre me oferecia um livro.

O livro aborda também o diabo, são os seus demónios que estão presentes?
AV: De onde é que vêm o diabo? Não é dos livros judaícos do velho e novo testamento. É o princípio do mal, há uma tese que é Deus e representa o bem, é um pólo, um extremo e o diabo, o satánas, é o mal que é muito anterior a doutrina cristã, porque o profeta Zoroastro de “assim falou Zaratustra” de Friedrich Nietzsche criou esse princípio do dualismo, do bem e do mal, só que numa perspectiva optimista, no fim haveria uma luta quase eterna, no final dos tempos o bem triunfaria sobre o mal. No novo testamento há uma coisa terrível sobre a porta que é estreita e todos serão chamados, poucos os escolhidos e há pessoas que se salvam, mas a maior parte vai para o inferno. Eu penso que o Cristo que eu vejo, o mestre deve perdoar, diz sim ao amigo e novamente ama-o, obra é quando o indivíduo ama o inimigo, mas para o judeu é olho por olho, dente por dente. Cristo diz perdoa até 70x7, é uma metáfora, quer dizer perdoa sempre, ninguém perdoa sempre. Então, Cristo ora é extremamente bom, ora é um demónio, porque manda as pessoas para o inferno, zanga-se com uma figueira que é velha e não pode dar figos, admiro que um homem que era o próprio Deus encarnado tenha fome, porque quer, ele transforma um peixe em mil e uma pedra transforma em pão.

Gosta na escrita de ter essas contradições?
AV: As contradições não são minhas. Eu abordo tanta coisa, o amor, o inferno, a morte.

É a sua linha condutora que existe sempre um oposto?
AV: Quando escrevo não escolho o tema, nem a palavra. Acontece e aparece.

Pensa muito antes de escrever?
AV: Eu observo um bicho, a partir dele pode haver a ideia para um poema. Há uma coisa que admirei, que me pode ter chocado, que gostei, mas não vou dize-lo, vou ter de escrever esse poema e mesmo que queira esquecer essa coisa, é como um demónio que entrou dentro de mim e diz-me que tenho de escrever e eu escrevo.

Existem dias em que não consegue escrever?
AV: Há momentos em Cabo-Verde em que estou estéril, como uma mulher que não pode parir.

Há muitos períodos assim?
AV A ideia para um poema vem-me. Depois há o problema de pegar na caneta e escrever. Tanta poesia que tenho imaginada e que nunca registrei, a que existe é aquela que esta escrita. Jean Paul Sartre dizia que todo o homem é poeta, mas não, sou é reconhecido por aquilo que registo, se não o faço, não existe. Eu escrevo livros para serem lidos, mas não vou lê-los, revejo para corrigir, ou para cortar, uma palavra a mais pode destruir um poema, a menos pode salvar, essa palavra não esta lá e vais ter de a encontrar.

E por hábito faz essa revisão constante?
AV: Eu vou contar-lhe uma história, quando escrevi “Mitografias” eu levei um amigo Curto, poeta e ele disse-me que o poema sobre Camões tinha sido o melhor que já escrevi, que era magnifico, muita gente escreveu sobre o poeta português, mas há uma coisa dizes num verso que o poeta é letra A de uma recta e João Cabral de Melo Neto que até foi nosso contemporâneoé o Z dessa recta porquê? São duas poéticas diferentes. Ele pegou no termo recta e referiu que não existe, digamos que é geométria abstracta, o traço que a gente faz mesmo com o lápis muito fino no papel não é uma linha, porque não tem dimensão, o ponto é um círculo, porque se o vir ao microscópio é um circulo envolvido numa circunferência, tem dimensão, o ponto é uma abstração, é ideal, tudo é geométria abstracta. A recta não tem princípio, nem fim, em termos científicos é um segmento da recta, é um pedaço, o mundo é finito, o universo provavelmente é infinito, nós somos também finitos e há o A e o Z. Ele fez uma boa observação sobre o poema de Camões, por outro lado, caiu numa cilada de me corrigir, porque depois do que aprendi com ele, li mais livros de geométria e matemática e poucos poetas falam das ciências exactas, para os cientistas os poetas são uns tolos inspirados, doidos subversivos. O poeta é um demónio que tinha uma divindade nele, que não tinha voz própria, era quase um ser irracional, que não tinha voz própria, o filósofo não, Platão era racional, Homero era um louco.

Considera-se um diabo por ser poeta?
AV: Nem Deus, nem diabo. Até provas em contrário sou um ser humano, limitado, fraco. Às vezes falta-me o corajoso, sou alguém que não tem muito jeito para dançar, nem para cantar, nem toca nenhum instrumento musical, mas gosto de música e dança.

E os seus poemas servem para os cantores cabo-verdianos cantarem?
AV: Só se for um estrangeiro, porque o cantor cabo-verdiano tem uma regra, uma religião, só se exprime em crioulo, em português é muito raro. Você consegue ouvir 3,4 mornas em português, o resto é crioulo. Pouca gente entende os meus poemas, é uma verdade.

Por isso, inventou heterónimos?
AV: Não, inventei um pseudónimo. Os heterónimos é uma invenção do Fernando Pessoa que é só dele. Ricardo Reis é um deles, que se torna um personagem de Saramago e de certa forma ele torna-se também um heterónimo do escritor, esta nele, qualquer escritor dramático escreve em várias vozes, as personagens não são iguais, tem o herói e o bandido, o escritor quase se desdobra, ele conhece o santo, porque esta nele, mas também conhece o diabo. O homem bom nunca teve um rival? Nunca ninguém lhe passou uma rasteira? Nem nunca desejou matar alguém? O mundo perfeito era uma chatice, não digo onde houvesse pobres, mas se tudo corre-se bem, se fossemos todos imortais, bonitos e jovens, isso era uma grande maçada. É um dilema, porque Hamlet diz “to sleep is to die, do die is to sleep” mas ele não quer morrer, quer dormir, mas se calhar quer ter um sono longo.

A eternidade é a sua obra?
AV: Não isso é impossível, porque o nosso sistema, a nossa galáxia desaparece.

Mas, os livros ficam.
AV: Sem sol morremos.

Não lhe interessa ser imortal através da sua obra?
AV: Imortal sim, mas com períodos em que seria morto para voltar. Sempre acordado não, é como se deixasse de dormir, para mim seria o inferno. Eu gosto de dormir, mas também gosto de acordar. O bom é não ter extremos.

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