
João Paulo Cotrim é um dos nomes incontornáveis da banda desenhada em Portugal. O livro "Salazar-Agora, na hora da sua morte", publicado em 2006, foi um sucesso de vendas, que comprova que ainda há espaço para as novelas gráficas no nosso país.
Sendo reconhecido pelo seu trabalho na banda desenhada de autor, num mundo que é dominado pelas grandes companhias como a Marvel, a Disney e outras com uma grande máquina de merchandising por detrás, há ainda espaço para os autores, há mercado?
João Paulo Cotrim: Eu acho que apesar de tudo são duas questões: Uma é o mercado, deixaria para depois, e outra se há ou não espaço, eu acho que sim que existe. A questão da banda desenhada (BD) de autor tem tudo a ver, mais do que a questão do mercado, com a vontade do autor de faze-la. Antes de ser editado bem entendido. É um meio que requer apenas papel, lápis e vontade. Assim sendo é fácil desenhar. Publicar é algo diferente. Mas, acho que essa ideia que temos que criar um mercado para um outro tipo de banda desenhada assenta numa ideia que entretanto passou de moda, que tem a ver com a década de 70 e 80 que foram anos em que banda desenhada explodiu. Era sobretudo, os heróis Marvel, um certo imaginário juvenil urbano e isso de facto estilhaçou-se, já não há esse peso tão grande. A BD vende cada vez menos, há uma grande concorrência dos jogos de vídeo, houve uma série de prolongamentos da banda desenhada que fez com que deixa-se de ter essa expressão e essa força. Assistimos depois na sequência disso tudo ao aparecimento de uma série de jovens autores quer na Europa, mas também no Japão, é mais ou menos simultâneo, e se calhar antes nos EUA na ressaca dos anos 60 por causa da censura indirecta dos distribuidores para coisas mais interessantes. E portanto, abriu-se o tal caminho que explode nos anos 90, como por exemplo, uma das tendências da banda desenhada contemporânea que é a autobiografia. O que se tem mostrado é que tem havido algumas grandes editoras que interpretaram esse interesse, embora haja diferenças entre os países, detetaram esse mercado de autor e investiram neles. Hoje convivem para além dos autores das massas, algumas editoras que tem espaço para uma novela gráfica mais ou menos experimental.
É uma realidade que se aplica a Portugal ou não? Ou é um caso à parte?
JPC: Não, também temos algumas coisas especiais. Há uns 10 anos traduzi um livro do Lorenzo Mattotti que vendeu cá tanto como em França. Exactamente como é um mercado mais pequeno, de menor dimensão, é mais atento, em alguns casos, as correntes alternativas que acabam por funcionar. O meu livro sobre o "Salazar-agora, na hora da sua morte" teve 3 edições e é um livro, não só pelo tema, mas como a forma que foi abordado por mim e pelo Miguel Rocha acabou por ser uma novela gráfica de sucesso bastante razoável. Mesmo hoje, as grandes editoras com a Leya e a Asa dão atenção a algumas destas tendências minoritárias. Também desde os anos 90 até 2000 tivemos uma série de novos autores portugueses a produzir novelas gráficas muito interessantes, que romperam com alguns cânones. Agora no Festival da Amadora apareceram um conjunto de autores interessantes, até há um novo prémio de banda desenhada para profissionais, com obra publicada. O trabalho que o Marco Mendes esta a desenvolver no "mundo fantasma" é absolutamente interessante e dos mais radicais diria eu nesta área das autobiografias e portanto acho que há espaço e produção, embora, tenha diminuído.
Voltando um pouco atrás e falando da obra do Salazar, foi curioso que tenha sido a vida de um ditador a suscitar tanta curiosidade, deixa um certo mal-estar no ar.
JPC: Aquilo acaba por ser um romance. A ideia surgiu da própria editora, a Parceria A.M Pereira, que é muito antiga, inclusivamente editou livros á volta da personalidade ainda no tempo de Salazar e depois do 25 de Abril fez algum trabalho histórico em cima dessas edições, com o professor Fernando Rosas e lembraram-se de fazer uma coisa em torno do ditador. A questão que coloquei é que aceitava fazer desde que tivesse completa liberdade, quer inclusivamente do ponto de vista do formato e do que íamos fazer e de repente coloquei-me uma questão que qualquer romancista se coloca perante um determinado tema: o que isto tem a ver comigo? Eu embora, tenha nascido ainda em ditadura, era muito pequeno quando aconteceu a revolução dos cravos, acho que apesar de tudo, nós, hoje, continuámos a viver e agora acho que mudou um bocadinho, mas ainda é muito assim, continuámos a olhar para a figura do Salazar como um mito, não como figura concreta, de carne e osso, com defeitos, com manias, como eu acho que até um certo ponto revela. O Salazar do ponto de vista do personagem é riquíssima, o modo como se relaciona com as mulheres, o modo como gere a relação com os militares, com a igreja, para além da influência que teve, faz dele uma personagem romanesca importante. Depois também do ponto de vista da imagem, da propaganda, foram produzidas muitas imagens, não diria que é informação, é mais uma construção á volta da figura, isso tudo interessava-me nesse sentido. Só o podemos eliminar das nossas vidas quando for uma pessoa real. Não conseguimos matar mitos, figuras de carne e osso consegue-se acabar com elas. Depois há uma outra influência mais perniciosa que é, hoje vivemos na ressaca desse período salazarento no modo como não nos conseguimos organizar numa situação como esta que vivemos de crise.
Acha que andámos mais uma vez em busca de uma figura paternal?
JPC: Não, acho que continuámos numa versão um pouco sebastiânica, exactamente, da qual não nos conseguimos livrar. Vivemos num país onde as pessoas se orgulham-se de não ir as reuniões de condomínio, ela é a nossa casa, não há nada que nos interesse mais do que nosso lar, isso tudo tem a ver com a falta de sociedade civil que tem muito a ver com o Salazar. Este processo foi absolutamente fascinante no trabalho com o Miguel Rocha, é muito integrado, muito de ping pong, não é o texto de um lado e a imagem de outro. Acabou por ser interessante.
Depois surpreende-o o sucesso editorial dessa publicação, tendo em conta que se tratava de banda desenhada e o tema propriamente dito que é sempre polémico?
JPC: A verdade é que a figura de Salazar continua a fascinar muita gente, a ser produzido não apenas em investigação histórica, mas também já agora alguns romances e outras abordagens que não são ensaísticas, uma biográfica história com algum rigor científico em torno desta personalidade. Muito tempo depois de ter desaparecido acho isso tudo estranho, temos uma forma estranha de relacionar-nos com estes temas, desse ponto de vista foi surpreendente. Depois devemos ter desiludido alguém que achava que a obra devia ser mais conservadora. Nós fizemos a obra na perspectiva do ditador, do homem que esta a morrer, só num caso ou outro nos atrevemos a comentar a obra. Para mim ajudou a criar um deserto do qual ainda hoje sofremos um pouco as consequências, mas não posso dizer que tenha sido surpreendido pelo impacto do trabalho. O que surpreendeu mais as pessoas é o facto de ser uma BD. Ainda há muito o preconceito que é algo para as crianças, ou para os saudosistas da sua infância, o que é historicamente incorrecto. Temos o Rafael Bordalo Pinheiro que é um extraordinário autor de banda desenhada e provavelmente editou o primeiro álbum de autobiografia. É a sua viagem de regresso do Brasil, trata-se de autor extraordinário e a BD é uma linguagem comum do comentário político. Nos jornais de grande circulação, por exemplo, há cada vez menos figuras como o Luís Afonso ou o José Bandeira. Se calhar a surpresa foi a estranheza de ser tratar de um livro de banda desenhada sobre Salazar, quando devíamos ter julgo eu, à americana, 300 romances sobre a guerra colonial e muitos filmes, devíamos tratar destes temas tabu, porque demonstrava que é uma sociedade saudável, trata-los sobre o domínio da ficção e da expressão artística.
Falando em heróis acabaram-se os ingénuos, como o Tim Tim, o Asterix e outros...
JPC: E mesmo o super-homem. Acho que tem a ver com os tempos. É óbvio que a BD como todas as formas de expressão artística capta o ar de uma época e de facto nós chegámos aos anos 90 com a perda da inocência e há muitos trabalhos interessantes, que repegam no super-homem, embora o homem aranha já não é um inocente, é um adolescente com problemas. O super herói tinha uma retidão moral que sabia distinguir o que era o bem e o mal e essas coisas baralharam-se, fruto do tempo, os autores imaginaram que no caso do super-homem seria um ser facilmente enganável, estava no meio dos pacóvias dos EUA, foi lá que aterrou e de repente vem para uma grande cidade para ser jornalista onde era facilmente enganado. Há uma série de obras que exploram esse lado mais humano, dos super heróis. Agora estamos num tempo em que a inocência acabou, somos mais pessimistas em achar que este é o pior dos mundos e a BD reflecte isso.
Os próximos heróis serão como no futuro? Mais soturnos?
JPC: Acho dificilmente que sejam mais soturnos do que estes. Serão claramente mais amorais, mais violentos numa fase, bem, estas coisas são cíclicas e pode ser que apareça um outro tipo de herói que nos resolva os problemas. No fundo é sempre esta questão, os heróis são no fundo actualizações das mitologias.
A questão da sexualidade também se coloca, antes eram...
JPC: Mais assexuados exactamente.
Agora, temos as mangas japonesas que até são bastantes explícitas.
JPC: É a mesma sequência de humanização dos heróis. A sexualidade deixou de ser tabu num certo sentido, mas noutro é mais alargado e portanto é também uma área óbvia de evolução. A outra obra fundamental para esse tornar o super herói mais denso é o Watchmen, são heróis pelas piores razões. A mesma a razão de ser um super herói já não é a vingança, ou um desejo de bem, isso torna as coisas bastante dinâmicas e portanto interessantes.