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O fato do cavalheiro meu tio

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 A arte da alfaiataria está a morrer a mesma velocidade que os mestres desaparecem e muitos dos clientes que valorizavam o seu trabalho.

Descobri recentemente que o último alfaiate que restava na cidade faleceu a cerca de um ano. Fiquei triste porque, a arte de fazer fatos vai-se extinguido à medida que os mestres morrem e com eles desaparece o saber acumulado de várias gerações de profissionais. Existe uma diferença abissal entre um fato feito à medida e um comprado na loja de moda. E não é preciso ser do sexo masculino para perceber a diferença. Esta à vista mesmo dos mais distraídos, o segredo esta no cair como se diz. As peças moldam-se a o corpo na perfeição sem o denegrir. Eu sei disto, porque tive um tio que só usava fatos feitos no alfaiate. E quando íamos até cidade, como ele gostava de dizer, aproveitava e ia até a alfaiataria do mestre António. Ao entrar deparávamo-nos com ambiente muito sóbrio, onde tudo tinha o seu lugar. Não havia restos de tecido no chão. Os tecidos de riscas estavam bem arrumados numa prateleira, os quadriculados ao lado e os lisos distinguiam-se pelas tonalidades que iam do mais claro ao mais escuro. Era muito chique, pensava eu. O meu tio cumprimentava o seu alfaiate e após um curto período de conversa fiada, passávamos a acção. Diante de um espelho enorme, lá o senhor António deslizava ladino a fita métrica ao longo do corpo do meu tio e ficava tudo decidido e anotado, enquanto o diabo esfregava um olho. A escolha das cores era a parte mais fácil, o meu tipo só conhecia dois tipos de panos, os pretos com riscas giz e os cinzentos-escuros. O homem era incapaz de arriscar. Eu, numa dada altura da minha jovem existência influenciada pelo “Grande Gatsby”, ainda cheguei a sugerir, uma única vez, infeliz devo acrescentar, um fato mais dandy, mais claro, mais da moda, bastou o olhar horrorizado do meu tio, e o sorriso complacente do mestre António, para calar-me para sempre. Cavalheiro sério que se preze, disse o meu tio severamente, usa fatos clássicos adequados ao seu estatuto. Nunca mais, perceberam? Nunca mais dei uma sugestão que fosse.

O alfaiate estava assim para os homens, o que o cabeleireiro é para as mulheres, acreditem. Porque enquanto o senhor António fazia a sua estranha dança em redor do meu tio, discutia-se a vida, o bem dito futebol e  maldizia-se a política nacional. Tema tabu, a religião, claro. E nos dias em que se esqueciam da minha presença? Queixumes sobre as ditas cujas esposas que lhes faziam a vida negra. Ah, o alegre inferno da vida doméstica! Mas, o mais fascinante de tudo era aquela mesa de trabalho, grande, espaçosa, portentosa, de madeira maciça que ele tinha e que ocupava quase todo o espaço. Uma espécie de altar onde ele iria transformar um simples pano num casaco de inverno de ¾. De “armas” do oficio em riste, lá atacava o tecido sem hesitação e com destreza, as tesouras enormes deslizavam quase sem ruído pelo tecido, obedecendo fielmente as linhas traçadas pelo giz branco. O mistério que se me apresentava na altura era perceber, porque umas eram contínuas e as outras intermitentes. E o mestre António fazia tudo isto enquanto trocava dois dedos de conversa. E em menos de nada, lá ele lançava a primeira prova sobre o dorso do meu tio, delicadamente fixa pelos alfinetes quase invisíveis. Um processo tão enganadoramente simples que culminava uma semana depois com a entrega.

Posso afirmar sem hesitação que os fatos do meu tio ficavam-lhe a matar. E estavam de acordo com o seu estatuto, de cavalheiro sério, como ele gostava de frisar. Continuo contudo, a achar que poderia ter variado na palete de cores. Mas ao igual que o seu alfaiate, os fatos á medida morreram com o meu tio. É pena. Ficava-lhes mesmo a matar!

http://blog-dos-alfaiates.blogspot.com/2010/02/alfaiates-arquitectos-da-elegancia-iii.html

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