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A recolectora de memórias musicais

Escrito por 

Celina Pereira não é apenas uma cantora de mornas cabo-verdiana, é um recolectora do passado oral do seu país. Um trabalho incansável audível através dos seus audio-livros multilingues que levam a cultura cabo-verdiana aos quatro cantos do mundo.

Vamos fazer uma retrospectiva da sua carreira e relembrar o seu primeiro disco que foi editado em 1986.
Celina Pereira: Foi antes nos anos 70. Em 1986 foi lançado o meu primeiro LP.

Cantado apenas em crioulo.
CP: Sim.

Este trabalho discográfico coíncidiu com um momento de viragem em Cabo-Verde.
CP: Sim.

A data não foi acaso ou foi?
CP: Foi ao acaso, mas há sempre felizes coincidências e acho que aconteceu numa altura específica.

Olhando para atrás e para estes 29 anos de democracia em Cabo-Verde e fala-se que que as novas gerações, mesmo na música, estejam a esquecer o crioulo em detrimento do português. O que sente em relação a isso tudo?
CP: Eu não sinto que os jovens estejam a esquecer o crioulo, porque é sempre a língua materna, que ouvimos nas barrigas das nossas mães, acho que é indelével. Até há um movimento da escrita, sobretudo nas redes sociais, as mensagens sms, em que os adolescentes escrevem sempre em crioulo. A língua não esta esquecida, o que sinto é que existe menos rigor na aprendizagem da língua portuguesa, porque vejámos as condições deficitárias da aprendizagem do português com que os candidatos a cursos superiores chegam à Portugal.

Mas, isso também não teve a ver com o facto que se pôs de parte a língua do povo opressor.
CP: Sim, do colonizador. Sabe que em todas as situações da história, da vida dos países, há gente mais fanática para algumas coisas. Eu não sou crioulista, eu nasci num país que sendo tão pequenino como é, mas estando um pouco espalhado pelo mundo, é uma nação com uma dimensão universal e vivemos numa época em que quanto mais línguas falamos, melhor convivemos. Nascer a falar crioulo e aprender a falar português é um privilégio, passar a ser-se bilingue, mas é ainda maior honra ser-se multilingue, porque vivemos em sociedades e mundos dessa natureza. Como prova eu editei alguns anos atrás uns audio-livros, sempre com uma característica minha de multilinguismo. Eu comecei a editar este tipo de formato em 1991.

Mas, porque começou logo a editar audio-livros, são formatos que, por norma, são associados a públicos que não conseguem ler?
CP: Eu escolhi esse formato, porque é uma forma de gravação e transmissão do que eu queria fazer que aprendi num país muito mais evoluído que naquele onde moro, que é os EUA. Eu tive um primeiro contacto com esse país, entre aos anos 90, quando saíu o meu primeiro trabalho sobre contos tradicionais. Um contador de histórias cabo-verdiano mostrou-me um audio-livro, aliás, vários, que já tinham sido lançados no terrritório americano. Eu comecei a pensar que a maneira como queria contar as minhas histórias também seria dessa forma, podia-se ouvir e ler. Acontece que nessa mesma altura foi convidada para ir até à África do Sul, a uma conferência, tive contacto com uma causa que defendia que protegia crianças cegas e comecei a pensar da melhor maneira destas crianças seguirem o meu livro seria ouvirem a história, porque não conseguiriam ler, mas também que tivesse uma inscrição em braile, que até hoje não consegui, porque me dizem que é mais difícil, ou é mais caro por vários motivos. Eu escolhi este formato, porque foi a forma que encontrei para poder abranger o maior número de ouvintes, ou de gente que pudesse “beber” o que queria transmitir sobre a cultura do meu país.

Reconhece, contudo, que o seu nome foi sempre associado à música cabo-verdiana e ao estilo das mornas. E como esse público de cabo-verdianos espalhados pelo mundo, encara a música e a cultura do seu país?
CP: Há sempre uma curiosidade enorme sobre Cabo-Verde e sabe que é a melhor bandeira do meu país, embora eu tenha no coração outro país, que é Portugal, onde escolhi morar. Cabo-Verde é um país conhecido sobretudo pela música nos últimos anos e pela voz de uma mulher que já desapareceu que é a Cesária Évora, ela era uma cantora de mornas e coladeiras. Eu sou uma cantadeira de mornas, sendo que nunca cantei apenas este estilo, tendo vindo ao longo dos anos a fazer um trabalho de pesquisa sobre tradições orais, que envolve as urcas, cantigas-de-roda, de contra-dança, rabolhos e cantigas-de-brincadeiras. O que eu sinto é que as mornas como um elemento que tem sido aplaudido, muito lenvantado como bandeira do povo cabo-verdiano, pelos nossos poetas, intelectuais, pelos nossos compositores, porque é a nossa alma, é como o fado e é realmente este estilo musical que une todos os cabo-verdianos, não é o batuque, nem é tabanca, nem a coladeira, nem a mazurca. As mornas que são compostas em português e crioulo é onde sinto a plenitude que todos os poetas querem dizer. Repare, a coladeira é um género que envolve algumas facetas do quotidiano, só tem, por exemplo, o lado satírico. As mornas, por outro lado, são satíricas, de amor, de saudade, são ponto de partida, há todo um arco-íris de emoções. Eu já fiz espectáculos em Cabo-Verde, estive em São Vicente, há dois anos e essencialmente cantaram-se mornas e eu senti que o povo queria ouvir aquilo, não estava lá para dançar, queriam ouvir a melodia ligada a palavra e as mornas são o essencial daquilo que quero continuar a fazer.

Mas, como dá importância a palavra, a história como é que no final faz a selecção? Tendo concerteza um leque variadíssimo.
CP: Quando gravei o meu primeiro EP de 45 rotações, a fonte de inspiração foi a minha mãe, aliás, eu aprendi a cantar mornas em casa. É verdade que também aprendi canto coral no liceu, onde se ensinavam mornas em português, na altura não se ensinava o crioulo. A primeira pessoa de quem eu “bebi” mornas foi a minha mãe, inclusivamente um tema de um tio meu, que faleceu relativamente jovem e a verdade é que tenho ido atrás das pessoas mais velhas para me ensinarem. Posso acrescentar que numa determinada fase da minha vida, ultimamente não tenho feito isso, andei 20 anos com um gravador de micro-cassetes que era obrigatório quando ia visitar a família à Cabo-Verde, porque sempre tive uma grande curiosidade em saber de mim própria. Eu costumo dizer que o colonizador não me ensinou nada sobre mim, ensinou sobre ele, as cidades, os rios e serras de Portugal. Não me ensinou sobre as ribeiras de Santo Antão, ou de São Nicolau ou de Santiago e para saber de mim, como colonizada, ou ex-colonizada, eu sempre quis saber sobre as mazurcas, as contra-danças, quando a minha mãe falava disso, eu fazia imensas perguntas, aliás, a minha curiosidade e intuição tem-me levado a saber sobre estas coisas. Eu sou um ser mestiço, de um país com uma cultura riquíssima que não se confina as mornas e coladeiras que eram do gosto colonial, porque na época era o que se gostava mais de ouvir.

Disse uma coisa curiosa que andava de gravador atrás de si, porque esses estilos musicais eram apenas de tradição oral?
CP: Sim, como sabe a cultura africana é essencialmente baseada na tradição oral, povoam as sociedades africanas, tanto que existem algumas etnias, como os mandigas na Guiné-Bissau, por exemplo, são os grandes contadores e cantores de histórias, contam histórias dos reis, imperadores do reino, tudo é cantando e sempre oralmente. Esta tradição perde-se se não a gravarmos e em Cabo-Verde nunca houve a preocupação de se fazer uma base etnológica, ou antropológica se quiser da cultura musical cabo-verdiana, tem havido pontualmente algumas coisas e eu tenho essa responsabilidade, porque não conheço outros artistas cabo-verdianos que tenham feito esse levantamento, tem sido uma luta.

Com que idade começou a fazer isso?
CP: Eu tenho feito isto desde os meus 30 anos. Comecei a perseguir a minha mãe nas férias, após o pequeno-almoço a contar-me histórias, cantigas-de-rodas e a ensinar-me as coisas mais antigas. Volto a repetir, a minha intuição me levou a procurar as coisas, a escavar se quiser.

Essa procura continua, tem sido um marco nestes últimos trabalhos que tem desenvolvido.
CP: Sim, o meu trabalho sobre contos cabo-verdianos é disso um exemplo, foi lançado em vinil, nos anos 90, é um trabalho feito essencialmente em crioulo, esta traduzido em português e inglês. A seguir, dei conta, como sou professora de formação, que só falando em crioulo eu não chegava ao grande público, somos 300 milhões a falar em português e resolvi que o meu próximo trabalho seria nessa língua. É o meu audio-livro mais recente e esta traduzido em inglês e francês. Mas, a fala, os contos são em português e posso dizer que esta colectânea de contos da CPLP continua a ser a minha luta, porque tendo dirigido esse trabalho, sempre disse que nos confins de Angola, Moçambique, ou Cabo-Verde onde os professores não tem electricidade, onde não chega a internet como é que podem ouvir? É necessário este formato, porque eu faço a narração dos contos e depois há outros artistas que também o fazem.

Qual é o feedback desses leitores cabo-verdianos, eles revêm a sua infância e vem ter consigo para abordar essas memória?
CP: Sim, tem até acontecido coisas que me deixam surpreendida. Fiz o lançamento na Holanda e nos EUA e não imagina como gente mais velha, mais nova do que eu e da minha idade que tem vindo ter comigo para me dizer, “ que deus a abençoe nunca mais tinha ouvido essas histórias, nem esta cantiga”, quando o primeiro disco sobre contos saiu em Portugal, eu dei uma entrevista não sei em que canal e houve um grupo de senhoras que ligaram para a associação cabo-verdiana, porque não tinham o meu contacto queriam saber quando o ia lançar porque queriam comprar o disco não era para os netos, mas sim para elas, havia cantigas de rodas que nunca mais se tinham cantado em Cabo-Verde até eu pegar nessa matéria e lançar essas cantigas. Graças a Isaura Gomes, presidente de Câmara de Mindelo, fiz a minha incursão nas escolas estive em 26 estabelecimentos de ensino, durante um mês, levei até um músico comigo e no final ela disse-me que “eu estava a roubar-lhe a popularidade, porque as crianças da rua só falam na Celina Pereira”.

E agora qual é o seu próximo projecto?
CP: A minha cabeça não para. Neste momento já esta numa editora um próximo audio-livro, que não sei quando irá sair, com outra colectânea de contos tradicionais. É um conto que escrevi em homenagem à minha mãe, mas vai ser um audio-livro multilingue, eu quero continuar nessa área. Devido as sociedades actuais eu não posso editar nada em apenas uma língua, não vai ser escrito só em português, também vai ser editado em inglês, crioulo, castelhano. É só um conto, mas não lhe vou dizer o título, já esta a ser traduzido.

Mas, as pessoas podem adquirir os seus outros audio-livros onde? Em lojas online?
CP: Não, o meu audio-livro mais recente que é “história do tambor abrir mundo” esta esgotado, o anterior esgotadissímo esta também. Neste momento na Associação cabo-verdiana em Lisboa tem ainda 3 ou 4 exemplares e infelizmente não estou mais no mercado, nem sequer em Cabo-Verde os encontra.

Porquê não se fizerem mais exemplares?
CP: Porque tem sido uma aventura minha, do meu bolso, o meu primeiro LP foi eu que paguei, o meu trabalho sobre contos foi pago com dinheiro emprestado pela minha mãe, pelo meu irmão, pela família toda, eu não tive quase apoios. Existiam duas instituições que estão indicadas na contra-capa no vinil que foram retiradas porque prometeram e depois não deram nada. Eu tenho feito “loucuras” por causa desta minha insanidade saudável de andar atrás das tradições. Não estou arrependida, porque tudo o que tem sido feito é para o meu prazer pessoal, mas é servir uma causa que tenho tomado como missão. Aliás, uma amiga minha diz que só as mulheres tem esta capacidade de encarar uma missão e levá-la até fim e esta é a minha causa que eu me impus e da qual nunca vou desistir. Eu sinto que Cabo-Verde precisa, porque temos de apostar nas crianças e no seu futuro mostrando a sua identidade, não nascemos por geração espontânea. Eu não tenho olhos verdes porque o meu bisavô materno era branco de olho azul e cabelo claro. Com as minhas perguntas e falando com a minha mãe fiquei a saber eu e os meus irmãos que temos um antepassado madeirense. Não estamos aqui por acaso, agora, ando atrás das mornas, não temos em Cabo-Verde uma pesquisa séria, não temos uma memória do que esta escrito sobre cantadeiras e cantadores de mornas que estiveram em Portugal nos anos 30, na primeira exposição colonial e depois na exposição do mundo português, nos anos 40, não temos esse registo. Eu continuo achar que é uma lacuna enorme, nos devemos isso em termos de formação de memória futuro aos nossos filhos e netos. Acho que este meu espírito de professora é para toda a vida, embora só tenha dado aulas durante três anos, acho que é esta curiosidade que vai estar comigo até o final dos meus dias, porque só sei que nada sei.

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