
Miguel Azguime é um nome incontornável da música erudita no nosso país, ou de invenção como ele gosta de apelidar. Criou o Miso Music Portugal com o intuito de ser uma janela aberta para o exterior dos jovens músicos portugueses e os novos compositores nacionais. É também um dos promotores do centro de investigação de investigação e informação da música portuguesa para o mundo global.
Vamos recuar no tempo e falar dos vinte e cinco anos do miso ensemble há diferenças em termos musicais?
Miguel Azguime: É uma pergunta difícil de responder, porque ao longo dos já vinte sete anos que fazemos este ano, crescemos, envelhecemos, alterámos a configuração e a sua prática e os nossos interesses também mudaram. Para fazer essa comparação entre o Portugal de 1985 e o de agora inevitavelmente estamos condicionados por estes anos que passaram pelo grupo.
Mas, acha que houve uma evolução ou não? Ou estamos a regredir?
MA: Acho que há duas perspectivas, desde o ano de 1985 até sensivelmente 1993, com o miso ensemble corríamos este país de lés-a-lés, estivemos inclusive na Madeira e no Porto Santo, com concertos que se realizam num universo efervescente interessado pelas artes e pela cultura. Era um mundo muito diferente, que não tinha a internet, existia, mas era apenas nas universidades e ainda não fazia parte do quotidiano das pessoas. As notícias circulavam pelos jornais e tínhamos uma presença enorme na imprensa. Eu tenho até um calhamaço com recortes dos jornais e um terço desses artigos foram dessa época, mostram à atenção que a comunicação social nos dava. Íamos com frequência à televisão, havia até espaço para outras músicas alternativas, eu diria para a arte, com A grande e não apenas para o entretenimento. Era num contexto do ponto vista sociocultural um Portugal muito diferente do país de hoje e esse período tinha algumas qualidades, mas também defeitos. O Portugal de 1985 comparativamente ao país destes últimos anos, finais dos anos noventa princípio do século XXI, é uma nação que mudou imenso com muitas coisas positivas no que se refere a música erudita, ou de invenção como prefiro chamar. A formação é de 2000% estamos a viver a ideia de ouro na composição de música portuguesa, superior à aquela que considerámos ser ainda melhor, a idade da polifonia, no século XVII. Temos grandes intérpretes, o agrupamento sond'ar-te electric ensemble, por exemplo, possui um nível igual ou superior ao resto do mundo. Há uma qualificação dos músicos extraordinária que fazem música com grande qualidade.
Focando essa vertente da qualificação o Miso Music Portugal tem tido um papel fundamental na promoção da criação através do festival música viva. Qual é a importância deste evento ao nível nacional e que balanço faz deste 18 anos de existência?
MA: Tudo isso é verdade e há o reverso da medalha. A sociedade neoliberal que se instalou nos últimos vinte anos e que se esta a agravar rapidamente de forma preocupante, que aparece com a perestroika, a queda do mundo de Berlim e o fim do chamado bloco de leste, abriu caminho para uma serie de excessos e uma manipulação das pessoas. E em vez de estarmos a evoluir civilizacionalmente, no sentido filosófico da vida, nas questões da vida e da morte que ocupam os seres humanos a milénios, (o sermos todos iguais que são as preocupações de ordem metafisicas e filosóficas que tem ocupado a humanidade), acontece o inverso. O que seria de nós portugueses sem o Camões, sem o Fernando Pessoa, sem a Vieira da Silva e isto é valido para tudo, no fundo há um legado, um património em termos de pensamento que de repente parece que não existe para ninguém, vivemos uma hegemonia de mercado, que destrói a memória, a terra e até põem em causa a humanidade. É um aspecto negativo que se ressente naquilo que é a disponibilidade da maior parte das pessoas para aquilo que não lhes é impingido pelo marketing e pelas televisões. Agora dito isto, para colocar em perspectiva estes por vinte cinco anos de uma forma muito lata, enquanto em 1985 tudo era expectativa, esperança e desenvolvimento em 2012 tudo é retracção, preocupação e temos muito menos actividade. Voltando ao festival, ele desempenhou efectivamente um papel importantíssimo (em plena consciência e modéstia a parte) no fomento de novas gerações de músicos portugueses que estão a dar cartas no mundo inteiro. Evoluímos também na nova composição com novos intérpretes, temos fomentado a criação musical, por isso há muitas encomendas. Demos oportunidades a muitos jovens para se apresentarem pela primeira vez num festival, alguns deles tem tido uma carreira brilhante e que são até músicos desconhecidos pelo público português. O festival segue uma curva, começa pequenino, depois vai crescendo e chegámos a 2005 com um evento com 25 concertos e em 2012 vamos ter nove concertos, melhor, sete, porque dois são jovens estudantes, ou seja, estamos reduzidos a um terço da actividade que tínhamos até uns anos atrás. Houve um crescimento até um certo ponto, mas agora estamos em queda como tudo o resto. É um problema que tem fundamentos financeiros, mas no fundo denotam uma opção que é politica sobre a humanidade e isso evidentemente preocupa-me. Em conclusão, a arte do ponto de vista estruturante é fundamental para a existência humana e aconteça o que acontecer perdurará e pode até ter momentos piores, mas acredito que os verdadeiros artistas criam em quaisquer circunstâncias, pode é não chegar as pessoas, mas paciência. Quanto aos poetas contemporâneos portugueses conhece? Haverá poucos, deve haver bastantes e bons, só que ainda não demos por eles.
Recuando um pouco ao festival, embora haja um retrocesso financeiro, o público está atento e continua a aparecer?
MA: Continua a aparecer e a estar atento. Diria mesmo que tem crescido, embora devagar, nos operamos numa área que há um trabalho de fundo que necessita de ser feito. Neste caso, as pessoas procuram-nos, a televisão hoje não nos dá espaço nenhum, com excepção do programa “câmara clara” onde estive a um ano. No obstante, apesar de não dispormos desses meios de divulgação em massa para chegarmos a mais gente, o público de facto tem crescido e temos hoje em dia um festival com casa cheia.
A Miso Music Portugal tem feito uma aposta na formação para crianças com música electro acústica e até foi criada uma ópera para esse efeito.
MA: Sim, temos feito muitas formações para as crianças. Estimulámos, fomentámos os profissionais, mais para aqueles que tem vocação, porque nem todos os artistas tem capacidade de lidar com as crianças. Como se diz que de pequenino se torce o pepino, face a esta hegemonia esmagadora do mercado, é fundamental leva-los para outros caminhos, alargar os seus imaginários, para que isso seja um caminho de expansão, de crescimento e curiosidade e nesse aspecto temos investido bastante em vários projectos profissionalizantes. Nas crianças pequeninas desenvolvemos vários para a infância, para o público infanto-juvenil, os contos contados com som e outras abordagens com as novas tecnologias que chamámos de música electro acústica. Eles têm acesso as máquinas, aos iphones, as tabletas gráficas e os computadores. Assim, a tecnologia passou a ser uma espécie de esperando da linguagem comum, que é transcultural, transsociológica e económica e a que todos tem acesso, uns mais e outro menos. É uma linguagem interessante, há uma receptividade muito grande, como é o caso da ópera, a menina gotinha de água.
Mas, em que contexto surge uma ópera para crianças?
MA: Enfim, é num contexto muito específico, existe em Portugal coro infantil da Universidade de Lisboa, dirigido pela Erica Mandillo, é um projecto único não só nosso país, mas em termos de coros infantis está ao nível dos melhores do mundo. É um trabalho notável e portanto, pela sua qualidade vocal, pelo seu movimento em palco e encenação, que no fundo esta muito para lá do concerto em que se ouve apenas musica, interessou-me criar um projecto que foi desenvolvido com os meios ao meu dispor na Miso Music Portugal. Envolvemos também uma centena de crianças que fizeram desenhos e estiveram em tempo real a manipula-los em mesas interactivas. A menina gotinha de água é um poema extraordinário de meados dos anos sessenta, é uma obra de arte total como referia Wagner, que envolve diversos meios, é no fundo uma redundância, já que a palavra quer dizer exactamente isso.
A outra vertente da Miso Music Portugal é a atribuição de bolsas para músicos. Como é que o exterior vê estes criadores?
MA: Há muito por fazer, peço desculpa mais uma vez, modéstia à parte, mas é o feedback que me chega, a Miso Music Portugal e o Centro de investigação & informação da música portuguesa (MIC) são certamente uma janela aberta para estrangeiro sobre o que se faz no nosso país. Nós temos uma rede alargada de parcerias com organizações internacionais congéneres, como o international music council e muitas outras, onde vinculámos muitas obras, dezenas de compositores e músicos para o estrangeiro. Há um conhecimento que tem sido potenciado por nós nesse meio, mesmo com a pouca divulgação. Começa a haver um interesse neste âmbito, mas deixe-me fazer um parêntese, temos de nos colocar na perspectiva do planeta, Portugal é pequenino em termos globais. Nesse sentido desenvolvemos o MIC, que é o maior repositório de música experimental e erudita, com mais de 600 partituras online de compositores portugueses, onde estão representados 40 músicos vivos, temos um repositório de 10 mil obras do século XX e XXI e agora estamos a andar para atrás, em vez de começar do passado para o presente, como queremos promover as pessoas em vida, recuámos do presente para o passado e já nos encontrámos a meados do século dezanove. Estamos a fazer o catálogo, mas também pretendemos fazer um inventário destas partituras, descobrimos que José Gomes Ferreira foi compositor, tem até sinfonias escritas que ninguém conhecia. Depois vamos passar a disponibilizar a música, tipo itunes, mas só portuguesa. Podíamos alargar este levantamento a todos os géneros, mas é uma questão de opção, sobretudo tem a ver com uma disponibilidade financeira e de recursos humanos, que é a mesma coisa. Eu conheço a minha área bem, mas é necessário especialista para isso e por agora é impossível.
http://misomusic.com/index.php/pt
http://mic.pt/?lang=pt