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O explorador do huambo

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Batida, aliás, Pedro Coquenão criou um universo musical marcante que é transversal a todos os tipos de públicos. Os seus espectáculos reflectem a sua visão criativa das suas origens africanas e do mundo, através de uma sonoridade ritmica e irresistível aliada a uma mensagem muito forte, que não deixa ninguém indiferente.

Pelo que vi nos concertos tu crias uma espécie de pseudónimos em termos musicais. Existe um universo musical em que os teus vários alter-egos, o batida, o dj, o pedro criam sonoridades diferentes, que incluem as tuas convições pessoais, é assim que funciona o teu processo criativo?
Pedro Coquenão: Na prática acaba sendo a minha perspectiva. O que eu acho é que tu próprio consegues ter várias visões, ter experiências diferentes. No concerto é fácil chegar ao palco, colocares-te no papel de artista, estares no cenário, debitas uma coisa semelhante ao que fizeste no dia anterior, as pessoas até gostam, mas há uma distância, uma formalidade, em que eles aplaudem no fim e depois eu vou-me embora, isso cansa-me um bocado, entedia-me e torna-se repetitivo demais. Eu gosto mais de procurar a perfeição do que de ter uma algo estéril que não se adapta, que não é vivo. Acabo sempre por ter uma organização, um método de ensaio com cada artista com quem quero criar individualmente, trabalho com eles em separado e quando é para estar em palco junto-os todos, dependo um bocado do momento, do público, da história do sítio onde estou e do concerto. Mas, por mais confortável que esteja não consigo esquecer-me dos meus amigos que estão presos em Angola. Pode até ser um chavão os artistas utilizarem este tipo de apelo, mas acredito sempre que haverá alguém que ficará a saber mais alguma coisa e a única arma pacífica para contrapor algumas destas injustiças que andam a acontecer no mundo é passando a informação. Mesmo que apenas uma ou duas pessoas tenham ficado curiosas e até tenham assinado a petição da Amnistia Internacional, ou feito ainda um google sobre o assunto já é bom, pelo menos ouviram o nome dessas pessoas, na televisão, ou na rádio e já vão encarar como um assunto que não é totalmente estranho e isso para mim trata-se de quebrar barreiras. Se tudo isto é feito com um personagem mais dj, mais artístico, ou performer é um pouco das ferramentas que uso para me exprimir no momento, ou provocar alguma coisa, porque a nossa vida é muito curta e fazer o que é mais confortável, não faz o meu género. Eu não quero ser o melhor, interessa-me criar obras fortes que provoquem reacções nas pessoas. Prefiro ter no público alguém que odiou, embora não procuro esse tipo de pessoas e nem quero criar esse tipo de sentimento, mas gosto de arriscar esses e os outros que amaram que sentiram que foi especial de alguma maneira, do que todo um público que achou tudo engraçado. Os heterónimos, ou pseudónimos acabam por ser alterações minhas que partem da minha forma de ser no dia-a-dia. Eu próprio tenho momentos em que faço coisas monótonas e outros dias em que tenho de ser criativo, não é o objectivo, é o substantivo de criar coisas novas.

Como é tudo isso funciona na prática?
PC: Quando trabalho com um artista acabo por investir muito do meu tempo a conversar, porque acho que é muito importante conhecer as pessoas, os locais por onde passo e isso se calhar provoca muita incoerência, coloca muito a necessidade de seres plural, mesmo em relação a mim próprio e ao que tenho para dar. Eu não sei o que é o ser melhor, ou o que é mais interessante, então, procuro fazer no palco o que passei a vida a ver em espectáculos e acho que o que as pessoas procuram é vulnerabilidade, é expôr-se, o público vai para ver sinceridade, honestidade e talento. Como não sei qual é o meu verdadeiro talento, mostro tudo o que tenho e deixo que as pessoas decidam o que gostam. Isto também inclui mostrar os artistas que vou trazendo para o palco e de que gosto muito.

Falando dessas parcerias criativas, como sublinhaste que vais ver muito concertos é desta forma que ficas a conhecer o seu trabalho, ou surge de forma quase espontânea ao conhece-los pessoalmente?
PC: Surgiram de várias maneiras. Vamos falar do concerto que é o mais honesto, eu precisava de um baterista, costumo trabalhar com dois ou três que estão sempre ocupados com outras bandas, então pedi a um contacto que tenho em Inglaterra o nome de alguns músicos e links sobre o trabalho deles. Andei a ver os vídeos que tem menos views, que foram gravados em sítios menos glamorosos, como no quarto a tocar, que é onde gosto de ver as pessoas, porque num palco grande é fácil tudo funcionar bem, agora quando a pessoa esta sozinha, é quando se vê o que o músico tem para dar. O Tom Skinner, chamou-me à atenção pelo dom de tocar bateria e pelo próprio curriculum, ainda por cima é o baterista de uma das minhas bandas preferidas, os “Owiny Sigoma Band", então convidei-o para ensaiarmos na minha garagem durante uns dias seguidos e tudo funcionou, aparentemente ele também estava familiarizado com a minha música. De show para show ele começa a perceber cada vez melhor o que eu pretendo, quero também que dê um pouco dele, não apenas que replique. O Bernardino Tavares, o dançarino mais alto, eu precisava de um bailarino que viesse das danças tradicionais angolanas, mas que tivesse também algo de rua, que não fosse um bailarino formal, esta foi a minha primeira necessidade, então foi ver os ensaios da uma associação em Lisboa chamada “Batoto Yetu Portugal” que ensina crianças e adultos a dançar músicas tradicionais angolanas. Não sei ao certo se estive a ver ensaios durante três meses ou mais tempo, mas ao princípio não me davam grande troco, porque não percebiam o que estava lá a fazer um tipo só a olhar e nesse período estive a conhece-los sem eles me conhecerem ainda, no final convidei dois, um deles foi o Bernardino e uma bailarina, a Daniela Sanha. Comecei a trabalhar com ambos fazendo shows à parte, partindo do que eles tinham que era a dança tradicional para outras coisas que me interessavam mais, trabalho as coreógrafias individualmente e tento tirar partido do que possuem de mais interessante. Tento desafiá-los para saírem da sua zona de conforto, de algo que nunca exploraram, porque é óbvio para mim, como por exemplo, o Bernardino fazer de mulher em palco, ele nunca tinha feito e agora gosta de colocar a pele desse personagem, é um momento de diversão para o bailarino. O Gonçalo Cabral surge porque estava à procura de um dançarino mais contemporâneo e encontrei primeiro o André Cabral que é uma das revelações em termos de dança comtemporânea, ele é incrível e tentei durante semanas fazer algo diferente, pô-lo a dançar música africana, apesar de ser descendente de angolanos foi puxá-lo do contemporâneo para algo mais sujo, mais empoeirado, menos perfeito se calhar e trabalhámos durante muito tempo. Houve um show em que conheci o irmão gémeo, que é o Gonçalo e percebi que ele também gostava do que o irmão andava a fazer e queria participar, então disse-lhe que um dia havia de surgir essa oportunidade, foi convidando-o a ver os shows e assim que houve uma oportunidade em que o André não pode fazer um espectáculo, convidei-o e continuámos a trabalhar. A Catarina Limão surgiu como VJ, ela entrou para a àrea do vídeo através de trabalhos que fiz de recolha de imagens próprias, mas gostava de ter alguém em palco que as manipula-se em tempo real, embora ela seja da área da rádio, também gosta de fotografia e imagem e durante um tempo ela fez isso. Depois foi empurrando-a para fazer outras coisas, começou a cantar e dançar que era algo que não fazia antes, são seus sonhos de vida, hoje em dia já não faz vídeos, só canta, dança e toca repercursão que é o que desenvolve mais agora. O Bruno Lobato é outro bom exemplo, esta na mistura, já trabalhou com os “terrakota” e os produziu os “nigga poison” de quem gosto muito. Ele sabe o que preciso em termos de som e como não posso estar em frente do palco a ouvir-me tem de ser alguém que me conhece e de quem eu goste muito, se não fosse ele teria de ser o Manuel Pinheiro que também faz o som do Noiserv, eu já trabalhei com ele durante muito tempo, em que essencialmente era eu como DJ e ele na repercussão. As pessoas com quem trabalhei não eram as minhas amigas, mas julgo que fiquei amigo de toda a gente, no fundo tem de haver amor e respeito mútuo para que isso se traduza também em palco, a ideia é de ser quase um encontro familiar, ou uma roda da aldeia para comungar.

O teu som é irresistível para o público que quer participar e dançar, contudo, as letras tem uma mensagem muito forte, são quase pólos opostos que não combinam, é o teu lado provocatório então?
PC: Se calhar. Todos nós somos um pouco incongruentes e a coerência não é uma qualidade do homem, nós tentámos, mas não nunca o somos. Acho bonito essa tentativa do ser humano, da minha parte há só um ensaio para ser minimamente coerente e decente, porque os que parecem o ser são chatos. Todos nós temos coisas que nos tornam interessantes, mas os políticos, os padres e os pais tentam passar essa imagem que não é real, no fundo ninguém consegue ser perfeito. Eu gosto muito da convergência, de estarmos juntos, de criar uma espécie de calma, de paz, de encontro e de celebração. Mas, depois acho que nada disso tinha piada se não houver alguma agitação.

Mas, não achas que a tua mensagem se perde, porque falas de temas tão fortes, referiste os teus amigos presos em Angola porque se reuniram para falar da palavra liberdade, por outro lado, a tua música é tão contagiosa e irresistível que remete o público para um comportamento explosivo e espontâneo, para a dança, a alegria instintiva e não é preciso fazer nada.
PC: Ainda bem, isso é a esperança e a salvação, porque se tivermos só a pensar nos nossos problemas e só a lidar com eles não vivemos. Nós precisámos desses ciclos, de pensar, de ser densos e preocupar-nos. Essa música que te referes deixa-me muito contente que as pessoas se tenham levantado e dançado, dessa honestidade com elas mesmas de não se terem deixado sentadas e aguentarem a sua coerência na formalidade até o fim e terem perdido um pouco a postura. Isso também é uma forma de interacção, interessa-me tanto provocar algum desconforto, fazer viajar, ou pensar, como também que as pessoas sejam alegres, que se soltem, abanem as ancas, especialmente neste zona mais Norte do planeta e Portugal esta muito perto destes países Angola, Brasil e Moçambique. Ao mesmo tempo estámos muitos distantes como a forma como lida se com a sexualidade e sensualidade. Só esse ponto das pessoas abraçarem-se com respeito já é muito bom, o corpo é muito libertador e a imagem solta-se. O tema dos “doidos” quase parece música de carnaval, refere-se a ser maluco e inconsequente, mas é um momento de leveza que precisámos. Se tivermos o dia inteiro a filosofar, a pensar, a ser políticos as tantas somos muito chatos e infelizes e a felicidade faz parte dessa libertação, da subversão das coisas, quando somos felizes, livres e generosos fazemos o mundo avançar, não é só reflexão. Mas, concordo contigo pode-se perder muita da minha mensagem para alguém mais distraído. Eu penso sempre que não tenho a esperança que chegue a todos, porque isso é impossível, mas que haja alguém a quem essa mensagem chegue mais, quero que um goste muito, mas que haja outro que goste muito mais e que o espectáculo lhe tocou.

Tu dizes que és angolano, apresentas música de origem africana, em palco trazes bailarinos com ritmos africanos, contudo não vives em Angola. Resides em Portugal e quem olha para ti nunca diria que és angolano, então como encaras a tua identidade?
PC: Eu sinto que isso é muito mais desconfortável para quem lida com isso do que para mim. Eu para já não digo que sou angolano quando sou obrigado a dize-lo, ou para provocar algo, nem que sou português, mas acabo por defender Portugal quando os meus amigos angolanos criticam a Europa e o nosso país. Se as pessoas falam dos angolanos usando muitos dos estereótipos conhecidos, eu também digo, que sou angolano. Na prática, eu não me sinto nem uma coisa, nem outra, para já ser-se mais nunca é ser menos, só quem quer ser coerente na sua identidade, que não sei o que isso é, porque corresponde a um pensamento conservador e pode ser confundido com nacionalismo e eu não gosto disso, acho que são sentimentos rídiculos, muito tacanhos, muito limitados no tempo. O conceito de países é algo muito recente e não sei como o mundo será daqui a algum tempo e estar-se a agarrar a uma bandeira,embora perceba, não me chega, nem me diz rigorosamente nada. Mesmo que queiras dizer que és português, isso quer dizer tanta coisa, quer dizer que se é angolano, brasileiro, ou goês, que podes ser descendente de muçulmanos, de ciganos ou judeus, há tanta coisa envolvida no processo de criação de país e de uma identidade, como podemos afirmar que somos impermeáveis? Eu nunca sei bem o que é essa noção de nação, é bonita para ver-se um jogo de futebol e torcer-se pela equipa, para termos uma sensação de pertença, mas acho que essa noção vem da família que escolhemos. Então extrapolando esta noção de identidade e do nacionalismo e o que estámos aqui a fazer todos, interessa-me mais saber o que estámos a fazer em conjunto e quando tenho de pensar em mim, vou agir naturalmente sem pensar muito como as formigas e as abelhas fazem, sem pensar muito constroem uma estructura, os animais acabam por ter uma grande potencial criativo para criar formas para a sua subsistência. Quando tenho de reduzir a minha experiência de vida e definir-me enquanto pessoa, sim, eu tenho que reconhecer que para todos os efeitos tem sido uma passagem muito curta, pelo menos passa muito rápido e o pouco tempo que cá estou acabou por ser nascer em Angola, crescer em Lisboa e das pessoas a darem-me referências de outros sítios, então isso faz parte da minha forma de escrever. A minha definição de tempo tem a ver com ter nascido nesse país e ter vivido noutro, embora sempre tenha ouvido falar de Angola, aquilo que me é mais imediato e onde o limite chega é falar das pessoas que me estão mais próximas, a sociedade angolana e portuguesa. Acho que o Brasil é um ponto de encontro que ainda não foi usado, Lisboa estranhamente é esse ponto de reunião destes povos todos, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos e até brasileiros, mas acho que o meu próximo trabalho terá mais potencial se for feito no Brasil, porque tem todo o tipo de pessoas, especialmente de origem africana. África é ainda um pouco esquecida na cultura brasileira, é vista como uma zona arrumada, não é parte do todo, mesmo assim muitos desses descendentes não tem a noção da sua ligação com o continente africano, essa conexão de sangue. A nação brasileira tem o potencial de aproximar a lusofonia, seja lá o que isso for, tem esse poder de agregação, de juntar pessoas e usar a língua de uma forma tão criativa, é diferente e ritmicamente é muito interessante, parece que esta mais próxima da vida, como em Angola, criam-se muitas palavras e inventam-se novos verbos se for preciso e eu gosto disso.

Essa é a tua próxima etapa redescobrir todo esse manancial no Brasil? Porque até agora estiveste estes anos todos numa longa tournée.
PC: Sim. Em Angola não tenho tanta coisa para descobrir, porque como deves calcular o estado do país e da forma como ele funciona, não permite que alguém que tem um discurso minimamente livre possa ter espectáculos lá, não faz sentido, não conto sequer que me convidem, porque há sempre com condicionantes. Um dia hei-de fazer um show por conta própria, mas não sei quando isso vai acontecer. Limita-me essa exploração do andar para atrás, então tenho de andar para a frente, contactar com o público na Europa é muito bom, os espectáculos são de grande qualidade, são muitos artistas a tocar, és obrigado a preparar o show bem, porque estas a ser colocado e comparado com artistas de um nível elevado e isso é bom porque te faz crescer, mas sempre gostava de voltar ao Brasil. Por coincidência ou não, que é algo de imprevisível, o meu primeiro espectáculo de sempre foi lá. Ninguém faz um primeiro show num país como este, por causa das distâncias e do preços dos bilhetes, mas eu estava lá porque tinha feito um documentário com um amigo meu, o iconoplasta, que é angolano, à convite do festival Cineport, em João Pessoa e preguntaram-me se tinha mais projectos e disse-lhes como estava a acabar o meu primeiro disco, que me pediram para apresentar e a reacção foi incrível. De certa forma emocionou-me, como esta música que viajou de Angola, passando por Lisboa e parando no Brasil o que demonstra que não é meu, é de todos e tudo isso deu-me vontade de lá voltar, de certa forma o país cresceu mais livre, porque é maior, tem mais diversidade, da qual também é uma parte de Angola e de Portugal e o pode-se falar na mesma língua que é uma vantagem que não dá para medir. Mesmo que a linguagem seja diferente da língua, como acontece no Norte do brasil, onde estive, não senti grande diferença, existe na mesma essa necessidade de jingar e sobreviver, mesmo a capoeira vem do outro lado do Atlântico, é algo que tem mais a ver com o corpo de que não se fala tanto e há mesmo muito em comum. Então, existe essa facilidade em comunicar, é como se fossem primos, ou irmãos separados à nascença, quando é um conceito de país irmão é bonito, desde que não seja nesse contexto político, faz sentido.

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