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O colégio

Escrito por 

 

Jaime Freitas foi pedagogo e director do único externato privado de São Vicente. Um passado que nos conta na primeira pessoa.

Tudo começou com o ensino doméstico administrado pela Dona Lucinda Andrade, fui um desses alunos e mais tarde o "encarregado de educação" que assinava as cadernetas que oficializavam o ensino que era administrado por ela em casa, digamos que era clandestino, mas era uma das únicas mulheres da ilha, a única em São Vicente, que tinha terminado o liceu no Funchal. Uma façanha muito invulgar para esses tempos onde o lugar das mulheres naquela altura era em casa a cuidar dos filhos. Uma inspecção impediu-a de poder trabalhar e houve desde logo uma grande reacção por parte da população local que via com bons olhos o aprender das primeiras letras e dos números aos mais jovens. Os pais, o padre Sousa, o representante da câmara, a própria dona Lucinda Andrade, o conservador-notário, Germano Gouveia, o Daniel Drummond que era responsável pelas telecomunicações e eu conseguimos uma autorização precária para fundar um colégio em 1964, o externato de São Vicente.

Inicialmente o ensino era particular, depois passou a ser subsidiado pelo governo central para que todos pudessem ter acesso, passou a ser gratuito, o que foi muito bom para a população local. Tudo era um desafio no colégio, lembro-me que a minha maior dificuldade era angariar professores para dar aulas, em particular para as áreas das físico-químicas e matemáticas. O período de férias escolares era aproveitado para procurar docentes. Inclusive estive toda uma noite insistindo com um engenheiro sediado no Funchal para que viesse até São Vicente dar aulas, lá o convenci depois de uns copos e até hoje quando me vê fala sempre nesse episódio, afirma que o enganei bem. (risos) É preciso relembrar que na época só havia uma estrada que contornava a ilha, ele tinha de levantar-se as seis da manhã para estar no colégio às oito para dar aulas todo o dia e sempre me ia dizendo que ganhava mais fazendo o mesmo no Funchal. Na parte de letras estávamos defendidos, tínhamos não um, mas quatro padres que cobriam o latim, o português e história. A Dona Lucinda Andrade que era uma mulher muito culta, estudiosa, falava fluentemente francês, era o que chamava o tapa-furos, quando faltava alguém para dar uma disciplina era ela a docente designada para o efeito. Se não fosse com toda esta boa vontade não conseguia ter pessoas habilitadas para dar todas as disciplinas.

 

Nos primórdios do colégio administrava-se apenas o primeiro e segundo ano do ensino básico com poucos alunos, mais tarde passou-se a leccionar até o quinto ano, (actual nono ano) e de cem passámos para mais de 300 alunos, porque os pais começaram a achar importante que os filhos viessem para a escola. Como fomos crescendo em número decidimos arrendar o prédio que era antes uma pousada. Tinha salas amplas, era uma construção antiga, mas tinha condições físicas para o efeito e só tivemos de fazer algumas alterações. Tentámos fazer um edifício novo de raiz, mas não conseguimos porque não tínhamos um alvará definitivo, necessitávamos do possuir paralelismo pedagógico, ou seja, por cada dois professores licenciados só podíamos ter um não-licenciado e no nosso caso só cerca de 50% do corpo docente tinha um curso. Uma percentagem que variava de ano para ano, porque havia professores que só permaneciam um ano lectivo e depois concorriam para dar aulas no Funchal. Para além disso, para as aulas de física e química tínhamos de ter uma sala própria e como não possuíamos todas essas condições não podíamos requerer o alvará.

Mesmo assim, nunca tivemos razão de queixa, nem sequer problemas com alunos, era acima de tudo um ambiente muito familiar. Nas minhas aulas de geografia uma das coisas mais difícil de explicar era o conceito de planície, não havia televisão, e eles nunca tinham visto tal, dizia-lhes que era como o mar só que em vez de água era terra. Os manuais tinham ilustrações, mas eram pouco elucidativos. Por causa do nosso alvará provisório, os nossos alunos faziam os exames ao nível nacional. Os testes eram enviados do continente e entregues na esquadra da polícia que depois ia levá-los só na hora do exame e tinham de vir professores do Funchal para vigiar e corrigir as provas. Era muito bom para os alunos e havia muitos louvores. Os educandos estavam sempre bem-dispostos e os professores da cidade até estranhavam, mas o facto é que eles sabiam desde que entravam no colégio que iam fazer um exame a todas as disciplinas no final do ano. Embora houvesse escolas que não necessitavam de prestar provas, como era caso da Ribeira Brava, mesmo ao lado, curiosamente as pessoas mais simples é que viam mais vantagens no fazer o exame, porque sabiam que o programa curricular nacional era todo dado no colégio, enquanto havia muitas escolas que não cumpriam esse parâmetro, portanto o nosso ensino era rigoroso. Creio que éramos um único externato ao nível nacional em que se os alunos eram avaliados através de uma prova. Se não fosse o colégio muitos bons alunos se teriam perdido, porque era muito mais fácil para os pais com menor capacidade financeira enviar para o Funchal os filhos que só tinham pela frente mais dois anos de ensino obrigatório no liceu e então valia a pena fazer o sacrifício para que pudessem ingressar na universidade. Em 1988 foi criado o ensino oficial, tivemos que negociar a passagem, porque aí o colégio já passou a ser pago, o que ocorreu com sucesso e actualmente os alunos ainda designam a escola básica e secundária de São Vicente como o colégio. O nome ficou.

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