Bruno Humberto é um performer, encenador, compositor e músico, nos últimos anos, desenvolveu trabalho a solo e performances site-specific, colaborando com vários artistas e companhias de dança-teatro internacionais. A partir da dança, teatro-físico, vídeo, som e poesia, proporciona-se um ensaio absurdo acerca do espectador, da sua ação, responsabilidade e passividade em massa. Uma sucessão de situações para uma audiência em deslocação, onde são desconstruídas coreografias de distâncias e poder inerentes em qualquer tipo de ritual. “A morte da audiência” para além de abordar a morte do próprio espetáculo fala-nos acerca do poder e as formas como é infligido no outro.
Queria que me explicasses um pouco sobre a tua peça “A morte da audiência”?
Bruno Humberto: É um espetáculo em que o público é convidado a agir, a movimentar-se, a participar e a reagir a instruções que são dadas no início quer de forma escrita, ou por um grupo de pessoas, ou apenas um indivíduo. Depois durante o espetáculo o público vai executar essas instruções de forma crítica, mais livre. Em cada cidade muda um pouco conforme os indivíduos e os grupos e ontem foi muito participativo e correu bem.
Trata-se de uma performance a solo.
BH: Sim, é a solo, mas com o público que participa.
A audiência acaba por ser as personagens.
BH: Sim.
Do que vi do teu trabalho como performer, tu escreves, por norma, os teus textos, preparas tudo, inclusive executas trechos musicais. Há muito espaço para o improviso nos teus espetáculos? Já que és o encarregado da conceção de tudo nas tuas performances do princípio até o fim, embora tu cries espaço quer direta, ou indiretamente para a participação do público.
BH: Há sempre uma estrutura delineada e existem pontos de a, b até c e no meio se houver algum incidente, ou algo que possa aproveitar no início do espetáculo, da sua poética, eu assimilo essa informação à favor da peça. E também há sempre objetivos e textos específicos que são carregados nesses espetáculos, mas depois quando se trabalha com espaço, com pessoas a movimentarem-se e a reagirem conforme o seu livre arbítrio, temos que adaptar os riscos que se tomam. Neste tipo de trabalho a parte da dramaturgia do público e a sua riqueza para mim é tão importante, como trabalhar um texto de cor, o público é um veículo onde passo para ação.
Tu escreves os textos conforme sentes tudo o que esta a tua volta, é uma reação a tua envolvência, neste caso se fala muito que as novas gerações não vão tanto ao teatro.
BH: O meu trabalho não é tanto acerca dessa questão. Aliás, “A morte da audiência” acaba por ser uma má tradução do título original que é “Death of the audience” em português a palavra audiência poderá ser público, mas também poderá ser uma audiência que é como um julgamento, como o número de pessoas que são espectadores de televisão, a má tradução acaba por funcionar a favor do título, em inglês, “audience” é público.
Então o que esteve por detrás da escrita desta peça performativa?
BH: Foi sentir uma certa crueldade ainda persistente no fazer teatro e tentar compreender a razão, porque temos objetos como peças de teatro, dança, rituais, o que nos leva a encontrar esse tipo de situações? A ideia surgiu de outra peça, porque cada conceção teatral surge de uma ideia, ou de uma imagem que surge da peça anterior. “A morte da audiência” estava em Newcastle que é um espaço maior e a minha peça acontecia no meio do público, no chão e então o único sítio que eu tinha para me esconder era debaixo do palco e esperei que o público entrasse no escuro e passou um, dois minutos, e estava-me a perguntar porquê me coloco nesta situação? De fazer um espetáculo sozinho, falar com as pessoas, a pressão de estar debaixo do palco sozinho, no vazio, no escuro e de certa forma isso criou um espaço, um tempo supercarregado ao nível poético, é uma metáfora, se estou debaixo do palco, o teatro esta morto, se calhar as pessoas vem assistir a um funeral, também senti que o público assume a personagem do público, como eu assumo a do Actor, ou do músico. Mas, se questionarmos essas personagens que assumimos e antes de qualquer mensagem, qualquer peça acontecer e se refletirmos sobre o próprio formato da própria estrutura isso pode levar a questões mais interessantes, eu acho que o espaço teatral é muito rico mesmo que nada aconteça. É um espaço metafórico que tem muita informação e tudo surgiu disso dessas imagens.
Tiveste a tua formação em Inglaterra, o que te levou a escolher as artes performativas em detrimento de outras áreas? Isto embora sejas um artista muito completo, porque escreves as tuas obras e também produzes a tua própria música?
BH: Porque a Goldsmith onde estudei tem um mestrado de “performance making” que é um curso mais disciplinar e agradava-me a ideia de estudar algo que tivesse oitenta por cento uma componente de práticas do corpo e a parte teórica e que fosse aberto ao trabalho com compositores e escritores, depois é um curso com muitos exercícios e com performances durante a formação e tive também acesso a uma experiência, quando comecei a estudar fiz logo peças de teatro com companhias de lá e assim tens dois tipos de formação, uma mais institucional e outra mais virada para o mercado de trabalho.
Tens performances dentro dos teatros, mas também usas o espaço exterior, na rua. Para além das diferenças óbvias o que te atrai neste tipo de experiências?
BH: Se me estas a falar de um teatro vazio, onde tem alguma coisa a acontecer, a informação que esse espaço possui é completamente diferente do jardim na rua, por exemplo, antes não havia uma estrada entre o teatro e o jardim, agora existe uma via rodoviária e os espaços em si já tem essas histórias impressas, para além disso, existem outras narrativas que estão a ser adicionadas a esse mesmo espaço. Seja uma área interior ou exterior são micropalcos, são cenários de filmes efémeros e tanto posso escrever uma peça para um vão de escadas, para uma ponte ou para um palco. A situação é efémera, mas os espaços são fixos.
Sim, mas o que ganhas como artista com isso? No teatro as pessoas estão ali, atentas ao que se passa, enquanto que na rua as pessoas podem parar por momentos e depois seguem o seu rumo.
BH: Sim, mas há várias formas de fazer teatro promenade, na paisagem temos que ter um grupo de pessoas que sabem que a performance está a acontecer e olham para esse espaço durante vinte minutos ou meia hora. Os benefícios nesse tipo de trabalhos é que as pessoas são convidadas a olhar para os espaços de outra forma, se tiveres uma performance num lugar e que queres que abra esse lugar e que quebre o quotidiano e a relação que tem com esse lugar isso já é suficiente. Eu sofro ao ver as possibilidades de contar histórias em diversos sítios e vejo mesmo muito potencial, embora circulemos pelas cidades, por vezes, de forma circular, é bom podermos parar e olhar para os sítios com coisas que estão presentes, com poemas que são paralelos, que flutuam, que desaparecem e que nos possamos não entediar com os sítios como uma peça de teatro, ou um filme contínuo, mais ou menos sobreposto.
Mesmo que só haja uma pessoa para ver?
BH: Sim, pode ser uma pessoa ou 500, já me aconteceu de diversas formas, depende do espetáculo. Em “Land” que é uma performance que tenho feito, divido-o numa instalação que tenho instalada numa praça, é uma coisa mais estática com coreografia e há outra parte em que as pessoas veem microcoreografias e há esse percurso em que existem 50, 100 pessoas e depois há uma praça em que há uma outra coreografia a acontecer e ai existem pessoas que vem dois minutos do trabalho e outras que ficam concentradas até o final, é importante fazer coisas que desaparecem que não deixam rasto, que esse rasto só fique nas pessoas, isso permite que trabalhem o seu subconsciente.
Já levaste a vários palcos internacionais este “A morte da audiência”, há diferenças nos públicos?
BH: Sim, há diferenças por causa da cultura, coisas tão simples como existem pessoas que são mais supersticiosas pela forma como o espetáculo rompe com uma certa dinâmica na cidade. Há praças que são em frente de um museu e é expectável que o espetáculo aconteça. Se for em frente de uma igreja, se for numa praça nova sem identidade, se for em granito de 1800 anos é diferente, ou seja, temos o contexto cultural e o espaço da cidade.
Houve algum dos teu projecto que te surpreendeu? Que o resultado não foi algo que previsses, tendo em conta que preparas tudo no espetáculo.
BH: Os projecto tem sempre elementos de surpresa que não controlas a diversos níveis. Há aspetos mais subtis em cada apresentação, ou cada projecto, existe sempre algo que faz pensar neste fazer continuo, todos os projecto tem uma parte de instabilidade, de urgência e perigo.
E tu gostas dessa componente do perigo?
BH: O perigo no sentido em passámos muito tempo nesses espetáculos, há aspetos que não são tangíveis e que são construídos ao longo do tempo que só se consegue compreender no fazer, ou no depois. Eu gosto dessa faceta, mas é cansativa.
Tens uma forte componente física nos teus trabalhos, tu trabalhas muito o corpo? Preparastes muito?
BH: Não, houve um tempo em que treinava bastante, mas agora há uma dinâmica, geralmente faço uma performance, mas conheço os meus limites e então a minha metodologia já é muito definida e como sei o que tenho de fazer há uma preparação semanal, os trabalhos são preparados semanalmente e o corpo é um registo.
O corpo envelhece e cresce o número de limitações, tens isso em conta quando escreves novos textos ou não?
BH: Por enquanto tenho feito os trabalhos com a mesma intensidade, mas fiz agora o “Carmo” no museu da marioneta de Lisboa e foi muito árduo, foi um trabalho muito físico, usava carvão como matéria, respirar o pó não era muito saudável e ficava mais cansado e aí senti esse peso, mas era o carvão. Claro que quando fazia as peças em Londres, quando era mais jovem, caia mesmo a sério sem me magoar, era especialista nisso, ainda consigo, mas fazia isso sem me aleijar e outras coisas mais perigosas, mas admito que há o envelhecimento do corpo, mas não é apenas o teu organismo, existe também a tua cabeça. Também gosto de encenar, essas experiências têm sido boas, gosto dessa componente. Mas, no geral, ainda não pensei muito nisso.
Das várias disciplinas que dominas tens uma preferida?
BH: Depende do ano, em 2018 gostei mais de escrever e pensar melhor no texto. Não tenho preferência.
E o que estas a preparar?
BH: Estou a preparar uma peça chamada “Sequestro” que em princípio vai estrear no Festival no Verão de Palmela. É uma peça interativa e estou a trabalhar com o Rui Almeida Paiva, quero desenvolver ainda o “Carmo” e estou a circular com o projecto da “Vala Comum” em colaboração com à Andresa Soares e João Pedro Martins.
Consideraste um nómada artístico? E não falo apenas da parte geográfica, abordo também o lado metafisico desta questão, os teus temas são muito dispares. Necessitas de um certo nomadismo para alimentar a tua criatividade ou não?
BH: Acho que mais do que nomadismo acaba por ser uma condição inerente desta dispersão, de itinerância.
Mas, se tivesses um espaço teu, durante muitos anos, sentias-te realizado na mesma?
BH: Como nunca tive essa possibilidade, nunca pensei nisso. Mas, se tivesse um espaço meu durante mais tempo, colaboraria com mais pessoas e criaria condições para que os outros artistas dinamizassem os seus trabalhos. Embora, eu já faço isso, tento que as pessoas se encontrem, desde escritores, performers, fotógrafos e criem essas pontes. Um espaço meu provavelmente seria uma experiência experimental, o espaço era o potencial e nunca seria um problema.